segunda-feira, 25 de agosto de 2014

TÂNIA TOMÉ | O abismo sol adentro



A arte requer a complexidade do sensível, sua atenção abrangente, como o olhar de uma criança em seus primeiros meses de vida, abrindo-se para que entre o mundo inteiro. Este é um livro solar, no sentido de sua intimidade com o tátil. A pele da escrita, o banho de imagens à procura de uma revelação através do toque, é o que entrevemos em suas imagens e no pulsar de suas anotações existenciais. Livro também da música e do teatro, representação do ser, transfigurado em ritual poético. Migração contínua de uma arte a outra. Metamorfose perene de perfis e sombras, palavras e coisas.
O sol ao qual se entrega a criação a partir de Tânia Tomé (Maputo, 1981) é o da diversidade a provocar os motivos essenciais do indivíduo. Parece um manuscrito comum a todos os poetas, pela simples ideia de compartilhar experiências do ser e estar no mundo. Vale, no entanto, uma referência a Marcel Schwob, ao dizer: “Assim como as máscaras são o signo de que há rostos, as palavras são o signo de que há coisas. E estas coisas são signos do incompreensível.” Munido de qual lanterna o poeta se entrega ao desconhecido? Como escutar no vento a letra secreta do sol?
Através da escrita, o desejo de Tânia Tomé comunicar-se com o mundo é visceral e contagiante. Este seu primeiro livro, portanto, revela-se como uma partitura evocada no reino do fogo, nas ruas insuspeitas de um amor incondicional, no caroço da linguagem que busca decifrar em si mesma, em Moçambique, África luminosa, terra de negra morfologia, teatro de vísceras em que o mundo se faz e refaz, constantemente, queira ou não, matriz de todos os cânticos que decifram e escancaram a existência humana. Liturgia do mistério e saliência de uma história entrecortada de deslizes e falsos testemunhos. África expedida para longe da terra, que seus poetas reescrevem com encanto e dignidade.
Ao conversarmos a respeito de sua poesia, Tânia Tomé foi aos poucos revelando sua paixão pela metamorfose, assim como a intensa afinidade com a música, ela mesma, desde criança participando do palco, numa mescla de gêneros a que acabou batizando de showesia, que ela trata de definir como sendo “um evento cultural que incorpora poesia, declamação de poesia, canto e todas as outras formas de expressão artística, tais como dança tradicional e moderna, e música nas suas mais diversas variantes, com instrumentos diversos (timbilas, tambores, mbiras, baixo, guitarra, piano, voz) e skach teatral com vários cenários, para dar vida à poesia”. Graças a este espetáculo Tânia tem difundido não somente a sua poesia, mas também a de toda uma tradição lírica de seu país, que inclui nomes entranháveis como os de Noemia de Sousa e José Craveirinha.
Ainda em nossas conversas, recolho a magia de sua fala, que esplende também através de seu olhar: “De resto, a paixão, a loucura, o amor, as palavras, o canto e o que canto neste livro, a arquitetura de amar, a geometria dos corpos, a noite, o peixe como me cabe na boca o som que há por vir, adoro”. Essa liberdade do falar que é a mesma de sua escrita, de seu canto, sua admirável maneira de ser, e os peixes inquietos transfigurados em imagens que perpassam todo o livro, seus peixes metamorfoseados em línguas que são a flor de um silêncio renascido nas coxas da linguagem (“Um Zambeze inteiro escala a língua, / escorre-me pelas pernas”). Tânia Tomé permite que o mundo escorra por suas pernas como uma semente líquida fundando a sede de um novo tempo, sua escalada à procura de um pouco mais de si mesma, absolutamente livre, expondo os sentidos aos acordes do acaso, até que se ilumine a beleza de estar viva, a doçura da existência, sua flor carnívora que mastiga sonho e vigília, para que o homem se mostre em sua nudez mais perene.
Ao ler “Meu poema impossível” é que compreendi bem o que ela me disse acerca da liberdade que esperava de mim no convívio com sua poesia. Ela mesma me disse: “Bate bem em meus versos até que eles aprendam a sorrir”. Não havia retórica alguma ali. Quando o poema revela, acerca de sua autora, que “onde mais me dói escrever / reside a alma”, o abismo da criação então acende suas luzes e o impossível se torna um belíssimo poema. Com igual intensidade vale percorrer toda a sua poesia, todo este livro de sensações incandescentes, de aprendizagem amorosa. Toda uma viagem que inexiste sem a força erótica com que nos reconquista a cada leitura. A música selvagem do gozo que evoca em nosso íntimo. Eros que não se cansa de dançar enquanto canta, tocando em seu próprio corpo todos os instrumentos com que freneticamente renova o silêncio. Sigamos seus acordes reveladores: “A boca, as mãos, os teus dentes / no meu lóbulo, o piano / é todo o futuro por vir, / uma pintura quieta como um pomo, / o pêssego que adoça / o som que há no silêncio:”
Em particular, ela, Tânia Tomé, tão luminosa, deixa-se agarrar pelo sol, muito mais do que intui ou desafia. Em seus esplêndidos 28 anos, um valioso prenúncio, já em forma bem desvelada e consistente, de quanto a poesia pode encarnar todos os tempos em um único verso. Desde, claro está, que se viva intensamente a imagem anunciada, o anjo que se ocupa da mão do poeta, desde que o rosto saiba reconhecer sua máscara e a coisa saiba identificar sua palavra essencial. Esta é, como o leitor já o verá, a poesia de Tânia Tomé, a de quem se entrega à completude do labirinto, com suas artimanhas de ocultação e revelação do próprio e inconfundível motivo da própria existência.

[2009]


[Prólogo do livro Agarra-me o sol por trás, de Tânia Tomé - organizado por Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2010).]

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