A
arte requer a complexidade do sensível, sua atenção abrangente, como o olhar de
uma criança em seus primeiros meses de vida, abrindo-se para que entre o mundo
inteiro. Este é um livro solar, no sentido de sua intimidade com o tátil. A
pele da escrita, o banho de imagens à procura de uma revelação através do
toque, é o que entrevemos em suas imagens e no pulsar de suas anotações
existenciais. Livro também da música e do teatro, representação do ser,
transfigurado em ritual poético. Migração contínua de uma arte a outra.
Metamorfose perene de perfis e sombras, palavras e coisas.
O
sol ao qual se entrega a criação a partir de Tânia Tomé (Maputo, 1981) é o da
diversidade a provocar os motivos essenciais do indivíduo. Parece um manuscrito
comum a todos os poetas, pela simples ideia de compartilhar experiências do ser
e estar no mundo. Vale, no entanto, uma referência a Marcel Schwob, ao dizer:
“Assim como as máscaras são o signo de que há rostos, as palavras são o signo
de que há coisas. E estas coisas são signos do incompreensível.” Munido de qual
lanterna o poeta se entrega ao desconhecido? Como escutar no vento a letra
secreta do sol?
Através
da escrita, o desejo de Tânia Tomé comunicar-se com o mundo é visceral e
contagiante. Este seu primeiro livro, portanto, revela-se como uma partitura
evocada no reino do fogo, nas ruas insuspeitas de um amor incondicional, no
caroço da linguagem que busca decifrar em si mesma, em Moçambique, África
luminosa, terra de negra morfologia, teatro de vísceras em que o mundo se faz e
refaz, constantemente, queira ou não, matriz de todos os cânticos que decifram
e escancaram a existência humana. Liturgia do mistério e saliência de uma
história entrecortada de deslizes e falsos testemunhos. África expedida para
longe da terra, que seus poetas reescrevem com encanto e dignidade.
Ao
conversarmos a respeito de sua poesia, Tânia Tomé foi aos poucos revelando sua
paixão pela metamorfose, assim como a intensa afinidade com a música, ela
mesma, desde criança participando do palco, numa mescla de gêneros a que acabou
batizando de showesia, que ela trata
de definir como sendo “um evento cultural que incorpora poesia, declamação de
poesia, canto e todas as outras formas de expressão artística, tais como dança
tradicional e moderna, e música nas suas mais diversas variantes, com
instrumentos diversos (timbilas, tambores, mbiras, baixo, guitarra, piano, voz)
e skach teatral com vários cenários, para dar vida à poesia”. Graças a este
espetáculo Tânia tem difundido não somente a sua poesia, mas também a de toda
uma tradição lírica de seu país, que inclui nomes entranháveis como os de Noemia
de Sousa e José Craveirinha.
Ainda
em nossas conversas, recolho a magia de sua fala, que esplende também através
de seu olhar: “De resto, a paixão, a loucura, o amor, as palavras, o canto e o
que canto neste livro, a arquitetura de amar, a geometria dos corpos, a noite,
o peixe como me cabe na boca o som que há por vir, adoro”. Essa liberdade do
falar que é a mesma de sua escrita, de seu canto, sua admirável maneira de ser,
e os peixes inquietos transfigurados
em imagens que perpassam todo o livro, seus peixes metamorfoseados em línguas
que são a flor de um silêncio renascido nas coxas da linguagem (“Um Zambeze inteiro
escala a língua, / escorre-me pelas pernas”). Tânia Tomé permite que o mundo
escorra por suas pernas como uma semente líquida fundando a sede de um novo
tempo, sua escalada à procura de um pouco mais de si mesma, absolutamente
livre, expondo os sentidos aos acordes do acaso, até que se ilumine a beleza de
estar viva, a doçura da existência, sua flor carnívora que mastiga sonho e
vigília, para que o homem se mostre em sua nudez mais perene.
Ao
ler “Meu poema impossível” é que compreendi bem o que ela me disse acerca da
liberdade que esperava de mim no convívio com sua poesia. Ela mesma me disse:
“Bate bem em meus versos até que eles aprendam a sorrir”. Não havia retórica
alguma ali. Quando o poema revela, acerca de sua autora, que “onde mais me dói
escrever / reside a alma”, o abismo da criação então acende suas luzes e o
impossível se torna um belíssimo poema. Com igual intensidade vale percorrer
toda a sua poesia, todo este livro de sensações incandescentes, de aprendizagem
amorosa. Toda uma viagem que inexiste sem a força erótica com que nos
reconquista a cada leitura. A música selvagem do gozo que evoca em nosso íntimo.
Eros que não se cansa de dançar enquanto canta, tocando em seu próprio corpo
todos os instrumentos com que freneticamente renova o silêncio. Sigamos seus
acordes reveladores: “A boca, as mãos, os teus dentes / no meu lóbulo, o piano
/ é todo o futuro por vir, / uma pintura quieta como um pomo, / o pêssego que
adoça / o som que há no silêncio:”
Em
particular, ela, Tânia Tomé, tão luminosa, deixa-se agarrar pelo sol, muito
mais do que intui ou desafia. Em seus esplêndidos 28 anos, um valioso
prenúncio, já em forma bem desvelada e consistente, de quanto a poesia pode
encarnar todos os tempos em um único verso. Desde, claro está, que se viva
intensamente a imagem anunciada, o anjo que se ocupa da mão do poeta, desde que
o rosto saiba reconhecer sua máscara e a coisa saiba identificar sua palavra
essencial. Esta é, como o leitor já o verá, a poesia de Tânia Tomé, a de quem
se entrega à completude do labirinto, com suas artimanhas de ocultação e
revelação do próprio e inconfundível motivo da própria existência.
[2009]
[Prólogo do livro Agarra-me o sol por trás, de Tânia Tomé
- organizado por Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2010).]
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