sexta-feira, 22 de agosto de 2014

FEDERICO GARCÍA LORCA | Uma apresentação



Federico García Lorca nasceu na Espanha (Fuentevaqueros, Granada), em 1898, e foi brutalmente assassinado em 1936. Infância e adolescência mantiveram o mesmo cenário, o de uma tradicional família rica espanhola que fora duramente atingida pela depressão econômica no século passado. Esta situação, segundo o próprio Lorca, resultou em uma “infância prolongada”. A partir de 1919, morou por dez anos na Residência dos Estudantes em Madri, onde conviveu intensamente com dois amigos fundamentais: Luis Buñuel (1900-1983) e Salvador Dalí (1904-1989).
Manteve uma curiosa relação ambígua com o Surrealismo. Ao concluir os poemas do livro Poeta em Nova York, por exemplo, escreveu a um amigo dizendo não tratar-se de surrealismo, argumentando: “a consciência mais clara os ilumina”, por alguma razão sem entender que esta “consciência mais clara” identificava-se com a idéia de “mais realidade” defendida pelo Surrealismo.
García Lorca viajou por inúmeras localidades espanholas, com a companhia teatral La Barraca, que então dirigia. Juntamente com Manuel de Falla (1876-1946), organizou um importante festival de “cante jondo” (cantar flamengo). Sua obra abrange a poesia, o teatro e a música. Combateu duramente aqueles que diziam que escrevia uma poesia popular, afirmando escrever uma arte “depurada, com uma visão e uma técnica que contradizem a simples espontaneidade do popular”. Os temas eram populares e sua poética buscava com obsessão uma simplicidade imagética. Basta pensar em metáforas como “flor de dedos”, “jorro de sombra”, ou versos como “dorme com os ecos” e “a noite me copia em todas suas estrelas”.
Era, na verdade, um romântico incorrigível e perseguia o lirismo em suas mais recônditas profundezas. Buñuel o considerava lacrimoso e simplório. Dalí o condenava por sua crença estóica nos ideais humanitários. Estavam ambos errados. No primeiro caso, ele próprio defendia que a grandeza de uma obra artística não dependia “da magnitude do tema, nem de suas proporções ou sentimentos”. Arriscou-se em sua busca de uma escrita clara, em oposição a uma obscuridade barroca, e nem sempre alcançou o que perseguiu. Já no segundo caso, sua integridade assemelhava-se a um estado puro de inocência. Nem de longe sofria de um alheamento social. Ao contrário, possuía uma consciência profunda de seu tempo e um incorruptível rigor ético, o que jamais foi o caso de Salvador Dalí.
Opôs-se à primazia de um tema sobre outro, tanto quanto de um estilo ou de uma forma. Recordemos palavras suas: “o que não se pode fazer é propor-se uma poesia com o rigor matemático de quem vai comprar litro e meio de azeite”. Lorca questionou inúmeras vezes as situações definidas em seu tempo no tocante a aspectos sexuais ou religiosos, seja em conferências ou entrevistas. Mais importante: sua própria obra permite rastrear a inquieta e lúcida discordância de seu caráter. Em uma entrevista datada de 1934 deixou claro que não é o tempo e sim a personalidade do artista que define sua postura e a excelência de sua obra. Muito antes já se precavera de um fatal infortúnio: a vaidade, considerando-a a mais pueril de todas as paixões.
Ao lado de poetas como Gerardo Diego (1896-1987), Rafael Alberti (1902) e Vicente Aleixandre (1898-1984), Lorca integra a conhecida Geração de 27 na Espanha. Basicamente um retorno tático a um classicismo, em sinal de resistência à fluência do potens poético desatada pelos inúmeros -ismos surgidos naquela ocasião. O exacerbado formalismo da Geração de 45 no Brasil só não corresponde de todo àquela geração espanhola porque ali tivemos expressões poéticas incontestáveis, a exemplo de Luis Cernuda (1902-1963), Jorge Guillén (1893-1984) e o próprio Lorca. No caso brasileiro, a grande poesia desta época não corresponde ao ideário estético compreendido como característico da denominada Geração de 45.
Decerto Buñuel via em seu velho companheiro de residência estudantil um abandeirado por este acentuado formalismo que se estava a tecer na poesia espanhola, o que é estranho se pensarmos na grande amizade que os unia. Disse dele, isto já em 1982: “Podia ler qualquer coisa, a beleza surgia sempre de seus lábios. Tinha paixão, alegria, juventude. Era como uma chama.” Lorca foi e não foi partícipe da Geração de 27. Buscou, na poesia, no teatro e na música, uma identificação com as características de sua época, porém sem perder a visão crítica, sem cair em uma aceitação cega, ou deixar, em momento algum, de discutir deslizes estilísticos. O que buscou no teatro ou na música não diferia em nada de seus poemas. Havia uma profunda raiz lírica ligando fortemente estas três manifestações de seu talento artístico.
O choque entre o mundo branco e o mundo negro foi fundamental na confirmação de uma intuição que já vinha de sua “infância prolongada”. Da Espanha branca para a negritude de La Habana e New York, é como sair do céu para o inferno. Dos poemas inocentes do Livro de poemas (1921), passando pelo Romanceiro cigano (1928), até Poeta em Nova York (1940), a crítica normalmente só consegue detectar uma mudança: a de que seus versos tornaram-se taciturnos. Ao descobrir uma latinidade - “Nós somos latinos”, disse em 1932 -, o fez compreendendo intrínsecos elos entre a realidade hispano-americana (Cuba era então seu único referencial) e a de inúmeras cidades espanholas que havia percorrido com sua companhia teatral. Esta ponte, se impõe uma respeitabilidade maior aos versos de um livro como Poeta em Nova York, confirma a delicadeza estilística, a obsessão por uma metáfora menos rebuscada, a própria potencialidade do espírito poético presente em livros iniciais, a exemplo de Livro de Poemas, Poema do Cantar Flamengo (1921) e Primeiras Canções (1922). Traz inclusive para o âmbito da poesia toda sua vasta experiência teatral. O mesmo Lorca de Bodas de Sangue está presente no “Diálogo amargo”, poema dramático incluído em Poema do Cantar Flamengo.

Praticamente toda obra literária de Lorca encontra-se publicada no Brasil. Sua obra musical hoje é uma raridade. O teatro possui traduções bastante difundidas: Bodas de Sangue, A Casa de Bernarda Alba, Yerma, O Sortilégio da Mariposa. A opção por uma coletânea de poemas amorosos não busca estabelecer uma dissensão temática. Antes atende a um diapasão do que o próprio poeta chamava de “um resumo dourado do lirismo”. Temos aqui uma breve antologia de um Federico García Lorca inteiramente tomado pela paixão, seja de ordem emocional ou estilística. Trata-se, portanto, de uma coletânea venturosa e afirmativa de uma poética. É ele próprio quem diz: “volta-se da inspiração como se volta de um país estrangeiro”. A presente antologia não pretende ser senão a narrativa de um trecho da viagem empreendida por Federico García Lorca. A poesia e o poeta seguirão adiante.

[1988]


[Prólogo da antologia Poemas de Amor, de Federico García Lorca, organizada por Luiz Raul Machado e traduzida por Floriano Martins (Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1988)]

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