Federico
García Lorca nasceu na Espanha
(Fuentevaqueros, Granada), em 1898, e foi brutalmente assassinado em 1936.
Infância e adolescência mantiveram o mesmo cenário, o de uma tradicional
família rica espanhola que fora duramente atingida pela depressão econômica no
século passado. Esta situação, segundo o próprio Lorca, resultou em uma
“infância prolongada”. A partir de 1919, morou por dez anos na Residência dos
Estudantes em Madri, onde conviveu intensamente com dois amigos fundamentais:
Luis Buñuel (1900-1983) e
Salvador Dalí (1904-1989).
Manteve uma
curiosa relação ambígua com o Surrealismo. Ao concluir os poemas do livro Poeta em
Nova York , por exemplo, escreveu a um amigo dizendo não
tratar-se de surrealismo, argumentando: “a consciência mais clara os ilumina”,
por alguma razão sem entender que esta “consciência mais clara” identificava-se
com a idéia de “mais realidade” defendida pelo Surrealismo.
García Lorca viajou por inúmeras localidades
espanholas, com a companhia teatral La
Barraca , que então dirigia. Juntamente com Manuel de Falla (1876-1946), organizou um importante
festival de “cante jondo” (cantar flamengo). Sua obra abrange a poesia, o
teatro e a música. Combateu duramente aqueles que diziam que escrevia uma
poesia popular, afirmando escrever uma arte “depurada, com uma visão e uma
técnica que contradizem a simples espontaneidade do popular”. Os temas eram
populares e sua poética buscava com obsessão uma simplicidade imagética. Basta
pensar em metáforas como “flor de dedos”, “jorro de sombra”, ou versos como
“dorme com os ecos” e “a noite me copia em todas suas estrelas”.
Era, na
verdade, um romântico incorrigível e perseguia o lirismo em suas mais
recônditas profundezas. Buñuel o
considerava lacrimoso e simplório. Dalí o
condenava por sua crença estóica nos ideais humanitários. Estavam ambos
errados. No primeiro caso, ele próprio defendia que a grandeza de uma obra
artística não dependia “da magnitude do tema, nem de suas proporções ou
sentimentos”. Arriscou-se em sua busca de uma escrita clara, em oposição a uma
obscuridade barroca, e nem sempre alcançou o que perseguiu. Já no segundo caso,
sua integridade assemelhava-se a um estado puro de inocência. Nem de longe
sofria de um alheamento social. Ao contrário, possuía uma consciência profunda
de seu tempo e um incorruptível rigor ético, o que jamais foi o caso de
Salvador Dalí.
Opôs-se à
primazia de um tema sobre outro, tanto quanto de um estilo ou de uma forma.
Recordemos palavras suas: “o que não se pode fazer é propor-se uma poesia com o
rigor matemático de quem vai comprar litro e meio de azeite”. Lorca questionou inúmeras vezes as situações
definidas em seu tempo no tocante a aspectos sexuais ou religiosos, seja em
conferências ou entrevistas. Mais importante: sua própria obra permite rastrear
a inquieta e lúcida discordância de seu caráter. Em uma entrevista datada de
1934 deixou claro que não é o tempo e sim a personalidade do artista que define
sua postura e a excelência de sua obra. Muito antes já se precavera de um fatal
infortúnio: a vaidade, considerando-a a mais pueril de todas as paixões.
Ao lado de
poetas como Gerardo Diego (1896-1987),
Rafael Alberti (1902) e Vicente Aleixandre (1898-1984),
Lorca integra a conhecida Geração
de 27 na Espanha. Basicamente um retorno tático a um classicismo, em sinal de
resistência à fluência do potens poético desatada pelos inúmeros -ismos surgidos naquela ocasião. O exacerbado
formalismo da Geração de 45 no Brasil só não corresponde de todo àquela geração
espanhola porque ali tivemos expressões poéticas incontestáveis, a exemplo de
Luis Cernuda (1902-1963), Jorge
Guillén (1893-1984) e o próprio
Lorca. No caso brasileiro, a grande poesia desta época não corresponde ao
ideário estético compreendido como característico da denominada Geração de 45.
Decerto
Buñuel via em seu velho
companheiro de residência estudantil um abandeirado por este acentuado
formalismo que se estava a tecer na poesia espanhola, o que é estranho se
pensarmos na grande amizade que os unia. Disse dele, isto já em 1982: “Podia
ler qualquer coisa, a beleza surgia sempre de seus lábios. Tinha paixão,
alegria, juventude. Era como uma chama.” Lorca foi e não foi partícipe da Geração de
27. Buscou, na poesia, no teatro e na música, uma identificação com as
características de sua época, porém sem perder a visão crítica, sem cair em uma
aceitação cega, ou deixar, em momento algum, de discutir deslizes estilísticos.
O que buscou no teatro ou na música não diferia em nada de seus poemas. Havia
uma profunda raiz lírica ligando fortemente estas três manifestações de seu
talento artístico.
O choque
entre o mundo branco e o mundo negro foi fundamental na confirmação de uma
intuição que já vinha de sua “infância prolongada”. Da Espanha branca para a
negritude de La
Habana e New
York, é como sair do céu para o inferno. Dos poemas inocentes do Livro de poemas (1921), passando pelo Romanceiro cigano (1928), até Poeta em
Nova York (1940),
a crítica normalmente só consegue detectar uma mudança: a de que seus versos
tornaram-se taciturnos. Ao descobrir uma latinidade - “Nós somos latinos”,
disse em 1932 -, o fez compreendendo intrínsecos elos entre a realidade
hispano-americana (Cuba era então seu único referencial) e a de inúmeras
cidades espanholas que havia percorrido com sua companhia teatral. Esta ponte,
se impõe uma respeitabilidade maior aos versos de um livro como Poeta em
Nova York , confirma a delicadeza estilística, a obsessão
por uma metáfora menos rebuscada, a própria potencialidade do espírito poético
presente em livros iniciais, a exemplo de Livro
de Poemas, Poema do Cantar
Flamengo (1921) e Primeiras Canções (1922). Traz inclusive para o âmbito
da poesia toda sua vasta experiência teatral. O mesmo Lorca de Bodas
de Sangue está presente no
“Diálogo amargo”, poema dramático incluído em Poema
do Cantar Flamengo.
Praticamente
toda obra literária de Lorca encontra-se
publicada no Brasil. Sua obra musical hoje é uma raridade. O teatro possui
traduções bastante difundidas: Bodas
de Sangue, A Casa de
Bernarda Alba, Yerma, O Sortilégio da Mariposa. A
opção por uma coletânea de poemas amorosos não busca estabelecer uma dissensão
temática. Antes atende a um diapasão do que o próprio poeta chamava de “um
resumo dourado do lirismo”. Temos aqui uma breve antologia de um Federico
García Lorca inteiramente tomado pela paixão, seja de ordem emocional ou
estilística. Trata-se, portanto, de uma coletânea venturosa e afirmativa de uma
poética. É ele próprio quem diz: “volta-se da inspiração como se volta de um
país estrangeiro”. A presente antologia não pretende ser senão a narrativa de
um trecho da viagem empreendida por Federico García Lorca. A poesia e o poeta
seguirão adiante.
[1988]
[Prólogo da antologia Poemas de Amor, de Federico García
Lorca, organizada por Luiz Raul Machado e traduzida por Floriano Martins (Rio
de Janeiro: Ediouro Publicações, 1988)]
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