Dou início a estas minhas
anotações sobre a obra de José Maria Eguren (1874-1942) com uma afirmação que a
muitos pode soar como uma profanação: a zona essencial de iluminação poética dessa
obra se encontra em suas fotografias, aquarelas e, em especial, em sua prosa
reflexiva. Na magia confluente desse ambiente plástico e reflexivo é que o
poeta peruano alcançou suas mais renovadoras páginas poéticas. Especialmente na
fotografia e nos artigos para imprensa ele apresenta um valor estético bastante
singular e surpreendente para a época. No entanto, a sua poesia teve melhor
sorte em termos de circulação, sobretudo internacional, projetando-o como
notável poeta simbolista, para alguns, e até mesmo como precursor do surrealismo,
para outros. Evidente que tenho em conta a queixa de Américo Ferrari, em seu
livro La soledad sonora (2003), ao
dizer:
Hoje, após três quartos de século, embora em
geral o extraordinário valor de sua poesia seja reconhecido pela “gente do
ofício” e pelos críticos entendidos, é fato que além dessas capelas Eguren
permanece um poeta quase ignorado: seu nome mal transpôs as fronteiras de sua
pátria, e sua poesia nem mesmo isto, pelo menos se pensarmos em Europa.
Talvez esteja
correto Ferrari ao deduzir que o principal motivo desse desconhecimento seja a
própria condição secreta, hermética, da poesia de Eguren. Mesmo assim, há que
por essa condição em equilíbrio com outro aspecto, que é a propensão natural da
poesia a tornar-se fonte de convívio demasiado exigente, afastando-se, ao longo
do século XX, principalmente, do leitor comum, seja por razões sociológicas ou
por puro exercício de pedantismo.
Gostaria
inicialmente de tratar dessa proximidade entre Eguren e surrealismo. Quando
Stefan Baciu publica sua Antología de la
poesía surrealista latinoamericana (1981), ali estabelece uma série de
equívocos acerca do tema que obrigam a correção por parte de qualquer um que
resolva tratar do tema com um mínimo de equilíbrio. No que diz respeito
especificamente ao peruano José María Eguren, o feixe de desacertos ou
afirmações suspeitas confunde lírica e narrativa, desconsidera cronologia de
publicação de obras, delira sobre o ambiente estético a que realmente pertence
o poeta, tudo isto movido pela obsessão de Baciu de criar uma condição
precursora do surrealismo no continente americano. Esta sua impertinência
irresponsável é falha na raiz, pois sendo o surrealismo um movimento que rompe
– como cabe, a rigor, a toda manifestação artística autêntica – com as
barreiras geográficas, Paris funcionando como o grande centro de confluências
de todos os visionários de uma época, é incabível falar de precursores
apontando países no mapa-múndi. Há precursores do surrealismo, porém não
chilenos, japoneses, australianos ou húngaros. Simplesmente precursores do
surrealismo. Da ordem de um Lautréamont, por exemplo, para referir-me a um
grande visionário nascido no continente americano.
O caso de
Eguren é impensável até mesmo do ponto de vista cronológico. O poeta peruano
publicou sua poesia em 1911, 1916 e 1929. Esta poesia é profundamente marcada
pela estética simbolista, seja do ponto de vista do léxico, temas, recursos
formais, grau de hermetismo etc. Ao contrário do que afirma Baciu, não há
contradição na leitura simbolista que se faça dessa poesia. Há sim, e aqui cabe
uma vez mais recordar Américo Ferrari, uma singularidade no simbolismo de
Eguren, quando nos lembra que no poeta peruano se destaca “uma verdadeira
vontade de possuir até o esgotamento o mundo dos sentidos e das formas
visíveis, porém tornando-a essencial, despojando-a de sua ganga de matéria, por
um lado, e, por outra, dos conceitos e preconceitos que associam pertinazmente
as coisas e seres do mundo com funções e manipulações sociais e instrumentais”.
Porém, essa particularidade é fruto de uma agitação interior do próprio poeta,
basta segui-lo em suas anotações, ao dizer: “no me produzco como filósofo, sino siempre como poeta. Mi divagación crea
un clima ávido de descubrimiento”, ou seja, é fruto de uma exaltação
visionária de sua própria vida, poeta isolado dos artifícios urbanos e da trama
literária, porém profundamente inserido na realidade do símbolo, na vibração
fascinante da escrita em sua busca incessante de descobertas.
Pontuemos
alguns aspectos em geral esquecidos em relação a essa avidez criativa do poeta.
Em 1923, como recorda Ricardo Silva-Santisteban na cronologia que preparou para
edição venezuelana (Obra poética. Motivos,
2005), Eguren “fabrica uma câmara fotográfica diminuta do tamanho de dois centímetros
com a qual imprime uma grande quantidade de fotos, que agora nos deslumbram por
sua nitidez e conservação, apesar do tempo transcorrido, aspecto que também nos
mostra o poeta como um adiantado de seu tempo, pela técnica e pela estética com
que realizou esta arte, da qual deu testemunho escrito no motivo ‘Filosofia do
objetivo’, em 1931” .
Deixemos a
palavra com o próprio Eguren, ao refletir sobre a arte fotográfica:
Vemos frequentemente desfigurações
fotográficas ou embelezamentos milagrosos, semelhantes a criações súbitas. Há
aquelas tão caprichosas que surpreendem, como se agentes desconhecidos as
confeccionassem com um estranho poder. Há negativos que parecem zombar do
fotógrafo e outros tão belos que chegam até nós como um presente, insólito de
tão perdurável. Os desenhos vanguardistas abundam nessas aparições. Verdadeiros
encaixes, dissociações harmônicas, seres inesperados, como se fossem produtos
de raras vidências, de um dispositivo mágico. A cada dia se aperfeiçoa a
câmara, a cada dia ela nos brinda com valiosas surpresas. A importância da
fotografia acresce sem dilação.
Há também que
mencionar sua aventura pictórica, experiências esparsas com aquarelas e carvões
com um valioso caráter inovador. Como recorda Ricardo Silva-Santisteban,
“Eguren eleva-se sobre os movimentos pictóricos do momento para se manter na
corrente viva da pintura de nosso tempo que, a partir do cubismo, se
desenvolveria com maior audácia e originalidade”, em seguida situando que no
artista peruano “se produz uma renovação pictórica de maneira intuitiva, porém
que passou desapercebida entre nós pelo extremo primor de sua execução e por se
tratar de uma tentativa de tom menor que acabou se esquivando da perspicácia de
nossos críticos de arte oficiais”.
No caso da
prosa reflexiva, os artigos inicialmente publicados datam de janeiro e
fevereiro de 1930, em páginas da revista Amauta
que dirigia José Carlos Mariátegui. Ali Eguren anota as primeiras observações
sobre ideais estéticos. É ainda a visão de um simbolista, embora deixe claros os
sinais de sua singularidade. Não esquecer que então já havia escrito e
publicado toda a sua poesia em
verso. Neste mesmo ano escreve apenas dois outros artigos,
sobre música. Em 1931 está concentrada a publicação da quase totalidade destes
seus hábeis exercícios críticos que somente em 1959 seriam recolhidos por Estuardo
Núñez em um livro intitulado Motivos
estéticos. Este conjunto de textos que possuem a particularidade de mesclar
reflexão e alta voltagem lírica é o radical que faz de Eguren uma das vozes
mais inspiradas de sua época. Quando pensamos na prosa mágica reflexiva de
poetas como o mexicano Octavio Paz ou o cubano Severo Sarduy vemos o quanto
Eguren pode ser considerado um parente próximo. Refiro-me a El mono gramático (1970), por exemplo,
quando a seu respeito o próprio Paz havia concluído que o texto “no iba a
ninguna parte, salvo al encuentro de sí mismo”. Penso ainda mais precisamente nas
páginas para imprensa escritas por Severo Sarduy e que somente após sua morte
foram reunidas em um volume (Antología,
2000), organizado por Gustavo Guerrero Jiménez. Temos aí, nos dois casos, certo
grau de parentesco, o que não deve ser confundido com situar a Eguren como um
precursor de ambos. O que se pode imaginar é o desdobramento que teria essa
escrita do poeta peruano, se acaso ele sentisse a necessidade de lhe dar
continuidade.
Importa
observar que é exatamente aqui que começa a grande aventura renovadora da
linguagem em José
María Eguren. É o grande rompedor, melhor dizendo:
aglutinador, de gêneros de sua época. Como recorda acertadamente o crítico
espanhol Jorge Rodríguez Padrón, em delicioso e revelador livro intitulado Del ocio sagrado (1991), “o poeta
desdobra o prosaico dentro poema; quer ver o poema a partir da prosa, e com
esta desenvolver corporalmente seu
segredo”. Também podemos dizer que provoca outras manifestações do poema nas
aquarelas e na fotografia, especialmente neste caso porque Eguren – e aí reside
sua condição de grande poeta – não se interessa pelas limitações de linguagem
alguma. É importante destacar que este mesmo crítico observa à luz da poesia os
motivos de Eguren, como se ali radicasse – com o que estou de completo acordo –
sua fascinante conquista poética. Rodríguez Padrón distingue aspectos como
fluidez e (busca de) clareza em uma escritura que se renova de forma atrevida
ao visitar áreas (até então) incomuns a seu território lírico. O ensaio de
Rodríguez Padrón sobre Eguren é talvez a mais luminosa página crítica já
escrita acerca deste poeta. Diz ali: “Sua escritura flui como movimento que não
conclui no estatismo perplexo de um achado (detenção diante do abismo); mas
tampouco se perde nas periferias inatingíveis do misterioso (esquecimento ou
alienação”.
Em seguida adverte
o quanto os motivos em Eguren assumem
a verdadeira magia poética de sua contribuição à lírica hispano-americana,
afirmando que
essa prosa não chega a anular o resplendor
poético; este lhe exige como sua imagem simultânea. Não é conseqüência do
hermetismo ou da indefinição em que aquela quis habitar, mas sim espelho onde
se expande e multiplica o mistério, onde a contenção se torna análise
igualmente luminosa.
O personagem
crítico que cria sem nomear nessa prosa é uma espécie de andarilho, o voyeur que posteriormente encontraríamos
em Severo Sarduy
– situando como distintas as zonas de interesse de um e outro –, este
igualmente singular caminhante, anotador de vertigens, assim como em Ítalo
Calvino, especialmente em um livro como Collezione
di sabbia (1984), reunião de seus textos para imprensa, acerca de temas os
mais variados. No milagre da escrita se encontra sua própria revelação, a
ramificação incessante de vertentes, visões, associações.
Mas voltemos
ao ponto-Baciu, que se torna um ponto
básico pela profusão de erratas. Antes que surja o surrealismo, Eguren era
um poeta simbolista, mesmo considerando as observações já anotadas que o
individuam no ambiente simbolista, com sua regularidade hermética e seus jogos
de linguagem que incluem acentos na rima e no ritmo. A voz singular do poeta
surge quando já se divulgam as idéias do surrealismo e surgem não em forma de
versos. Eguren tinha a mais plena consciência do surrealismo. Não foi seu
precursor ou seguidor. Era um contemporâneo do surrealismo, a quem soube ler
sem preconceito ou necessidade de adesão. Tudo em sua personalidade inquieta
apontava na direção de novas provocações, como se quisesse testar até que ponto
resiste a criação diante dos obstáculos de seu tempo. O que observa Rodríguez
Padrón acerca dos motivos é válido
também para as fotografias: “movimento expansivo que não evita o acaso dos
encontros (vizinhança evidente com o surrealismo), que assume – em sua ordem
estrita – a livre alteração lógica do discurso como seu fluido principal”. E como Eguren precisamente via o
surrealismo? Vejamos um fragmento de artigo publicado en La Revista Semanal (“O novo
anseio”, 1931), referindo-se às tendências da arte naquela ocasião:
O surrealismo é a penúltima evolução,
considerado como um realismo de realismo. Os prosélitos desta tendência, vendo
a realidade mistificada por atavismos ou falsos rumos, propõem a verdadeira
realidade poética, e buscam na vida tipos como a Nadja de Breton, tão
transitória que se não a tivesse descoberto este escritor, nada conheceríamos
da deliciosa menina. Porém se na realidade são descobertas belezas que parecem
sonhadas, antes de tudo o surrealismo é uma realidade de sonhos. Se hoje esta
tendência é considerada como passadista, não se descobriu outra que lhe possa
suceder.
Por vezes
penso que me excedo em dar ao livro de Stefan Baciu uma importância à qual
talvez ele não corresponda. É possível que não tenha circulado senão entre meia
dúzia de apaixonados pelo tema, e todos tenham chegado à mesma conclusão minha
acerca de sua completa inconsistência. No entanto, em um tema com tão escassa
bibliografia como é o caso do surrealismo no continente americano, eu me sinto
responsável por denunciar o ponto de cegueira da visão do crítico romeno. Em
1969, o poeta Javier Sologuren publicou através de sua legendária aventura
editorial, Ediciones de la Rama Florida ,
um breve volume com um texto recuperado de Eguren: La sala ambarina. Anoto aqui o que escreveu Baciu sobre este
brevíssimo texto de Eguren: “constitui um dos melhores exemplos de escritura
automática, visão de sonho e pesadelo mesclado em um mundo metade real metade
irreal”. Rejeita ainda que o editor o trate como conto. Já reli inúmeras vezes
esta isolada narrativa de Eguren e não há sinais de sua escritura automática.
Mesmo que seja confirmada a técnica de escritura, o texto é mesmo uma
narrativa, nada fantástica, e inclusive inexpressiva no conjunto da obra do
peruano.
Em uma dessas
manhãs em que alguém acorda benevolente com o mundo, releio o capítulo do livro
de Baciu dedicado a Eguren e ali ao final ele observa que o poeta construiu uma
obra “feita de pedaços de sonho, visões noturnas, caixas de música e quadros em
miniatura”. Esta afirmação recorda muito o ambiente daqueles artigos escritos
por Ítalo Calvino sobre mostras fantásticas a que me referi anteriormente. O
surrealismo granjeou inimigos em muitas circunstâncias. Talvez o pior desses
inimigos seja a parcela míope de seus aficionados. Baciu se dizia um defensor
do surrealismo. Não tenho dúvida em dizer que o surrealismo passaria muito bem
sem ele. Se acaso insisto em considerá-lo aqui isto se dá – reitero – pela
lamentável escassez bibliográfica da poesia na América Hispânica, o que de
outra forma levaria ao ralo os títulos inconsistentes, entre os quais ocupa
posição cimeira a referida antologia de Stefan Baciu. Eguren não era um
miniaturista inserido no espírito surrealista. Suas anotações críticas não eram
aleatórias ou regidas pelo acaso. Como recorda Rodríguez Padrón, eram
determinadas por uma necessidade de equilíbrio entre o sonhado, ou entrevisto,
e a realidade.
Na tradição
lírica do Peru a presença de José María Eguren possui um lugar que me parece
inapropriado. A começar por certa insistência em sua ruptura com certos vícios
modernistas imputados a Santos Chocano, seu contemporâneo. Duas perspectivas
distintas, naturalmente, porém não entendidas por Eguren como adversárias, uma
vez que lhe dedicou versos em que menciona a importância de Chocano em seus
primeiros esboços poéticos. Não é no poema, cabe repetir, que radica sua
profundidade renovadora. Como se trata essencialmente de um poeta, parece
ocasionalmente natural que todos busquem justificativa estética para seus
poemas. O poeta, no entanto, acabou por surpreender a todos, ao deslocar o eixo
de leitura do fenômeno poético de sua época.
José María
Eguren foi e não foi um grande poeta. Não escreveu um só poema que se possa
recordar como renovador da lírica em seu tempo. Porém deixou uma série de
escritos sobre temas que dizem respeito à criação no tocante à música, à
pintura e à poesia, mesclados a suas idéias muito singulares acerca da
filosofia e da estética, que o situam como um grande adiantado em seu tempo.
Mas, sobretudo, o qualificam como um pensador lúcido acerca das relações entre
criação e interferências externas. E um provocador no sentido de que as correntes
que limitam a criação deveriam ser rompidas. Nisto consiste – e não se trata de
um dado a ser desprezado – seu verdadeiro papel de inovador.
[2011]
[Publicado na Agulha
Revista de Cultura # 9 - Maio de 2011.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário