sábado, 23 de agosto de 2014

ALFONSO PEÑA | Uma galeria marginal de tipos



Quantos personagens pontuam nossa existência com a lucidez fantasiosa de suas influências? Quantas vezes nos sentimos como protagonistas da mais absurda ficção? Creio que mais nos identificamos com a irrealidade suposta do ficcional do que propriamente nos reconhecemos em um ou outro personagem, esta última me parecendo quase sempre uma leitura meramente intelectualizada do assunto. De fato, consideramos mais irreal nossa existência do que real a ficção. A medida da realidade estaria então no grau de relacionamento do homem consigo mesmo. Indagar "como se faz um conto?" equivale a buscar um padrão de realidade.
As narrativas ora se esmeram na captação de um diálogo real, ora se definem justamente por seu mascaramento. Observa-se comportamento distinto entre países, épocas e autores. E por trás das distinções há sempre uns defensores de sua verdade incontornável. Cria-se então o dogma do "é assim que se faz", risível figura de linguagem que tanto equívoco tem impresso à leitura das obras. Nada em nosso cotidiano interrompe, retarda ou atropela a convivência do artista com os diversos tempos que compõem sua experiência criativa. Não por fatalismo, antes que me sugiram outro equívoco corrente. Nenhum diálogo se interrompe de todo. Transtorna-se, transforma-se. Tal fôlego irredutível apenas os grandes escritores conseguem tocar, e dar-lhe imutável forma.
O que temos em Alfonso Peña é uma compreensão depurada desse ardil que fantasia dissensão entre arte e vida. Disse Max Ernst que a arte é produto de um "intercâmbio de ideias". E eis aí sua relação intrínseca com a vida: ser todos e ao mesmo tempo nenhum. Não temer se misturar ao mundo, porque somente a partir de então é que se perceberá a si mesmo. Vale então recordar umas palavras de Michel Leiris, ao ressaltar como importância essencial da arte "tornar sensível o mistério dos elementos que põe em jogo". E o que pomos em jogo é nossa própria existência, seus focos obsessivos. A angústia de A, a paixão estarrecedora de B, o capricho mundano de C. Um mundo de anônimos. Talvez tenhamos mais a ver com os figurantes de uma narrativa do que propriamente com o arquétipo encarnado por seus protagonistas.
Ao lermos os relatos que compõe A nona geração, não importa tanto o nome daqueles personagens, mas antes nos anima o fato de nos percebermos entre eles. São uns desgraçados que ou põem em dúvida sua própria existência ou se encontram tão embevecidos por sua torpeza que mal dão conta de si. São absurdamente reais. Inaceitáveis, de tão patéticos. Não há carisma ou ar angélico algum. São pura e simplesmente patéticos. E em tal metáfora da existência humana é que radica a originalidade estética de Alfonso Peña.
Ao depurar personagens que mais funcionam como contra-personagens, gente sem glamour algum, sem nenhuma lição sublime de vida para exibir, foi tecendo uma galeria marginal de tipos, o comum dos mortais, que está ali apenas por estar, como em sua própria vida. Uma subversão de nossa precária ideia de transcendência. O anão fantasiando uma genealogia, os garotos acanalhando uma sessão de cinema, a mulher traindo o marido com um amigo dele, os dois irmãos vivendo encastelados em sua ilusão da realidade, músicos de bar, lutadores de boxe, poetas frustrados. Os desvãos da existência humana ali estão impregnados da mais vulgar realidade. São apenas o que são e não porque assim devam ser.
Contudo, ao narrar histórias de uns pobres diabos inumeráveis, Alfonso Peña não se dissocia do fato de que são histórias escritas. E aqui retornamos àquele esmero inicialmente referido no que diz respeito ao plano estético. Ao subverter um tratamento modelar o faz à sua maneira, recortando tempos, tipos e referências simbólicas, mesclando inúmeras formas de narração, frequentando a intertextualidade com um peculiar sarcasmo, mas sobretudo exímio na definição estrutural do livro em si. Alfonso Peña não escreveu um livro de contos, dentro do habitual sentido de uma coletânea de narrativas. Soube dar à sua galeria de temas uma ambientação singular, estruturando o livro como uma peça única, que decerto cativará o leitor justamente por essa afinidade com sua vida mundana. A um só tempo somos todos e nenhum.

[2000]


[Prólogo do livro A nona geração, de Alfonso Peña - tradução de Floriano Martins (Fortaleza: Edições Resto do Mundo, 2000).]

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