Como já alertara com
clareza o poeta argentino Aldo Pellegrini (1903-1973), em sua monumental Antologia da poesia surrealista de língua
francesa (1961), a grande novidade do Surrealismo está no fato de que “este
movimento foi a crença de que a arte não tem uma função em si, mas sim que é um
modo de expressão do vital no homem”.
É inquestionável que esta concepção de arte e vida como elementos
constitutivos de uma mesma unidade representa algo como a raiz deste movimento,
aliando-se a ela, por seus laços comuns, a defesa de uma libertação espiritual,
aquilo que o próprio Breton situava como a necessidade de uma “vertiginosa descida
no interior do espírito”.
Some-se a esta outras decorrentes conquistas do Surrealismo, a exemplo
de seus fundamentos, tanto no âmbito do erotismo, do maravilhoso, da imagem,
como a crença iluminadora da poesia como fonte de conhecimento.
A publicação do volume I de A
aventura surrealista (1995), traz uma série de particularidades
fundamentais acerca do Surrealismo. Antes de mais nada, seu autor, o poeta
Sérgio Lima (1939), deve ser apresentado como um dos difusores mais
consistentes do movimento, além de responsável por uma revisão do Surrealismo
de indubitável teor crítico.
Desde seus outros livros, O corpo
significa (1976) e Collage
(1984), vem tecendo um encadeamento de reflexões que ampliam as possibilidades
reais de avaliação da contribuição surrealista no âmbito da poesia e das artes
em geral, ao mesmo tempo em que situam com propriedade as corretas referências
tanto a nível político quanto filosófico.
Com este novo livro, Sérgio Lima denota uma extrema ousadia, enfim
vitoriosa, ou seja, a de reunir acervo crítico e obras do Surrealismo em toda a
sua fascinante e múltipla trajetória, reunião esta orientada cronologicamente
pelo início do movimento em si, a partir da figura central de André Breton,
abrindo-se à instauração de seus diversos núcleos, tanto na Europa quanto na
América Latina, desde os anos 20 até os dias atuais.
A aventura surrealista é resultado de uma exaustiva pesquisa que vem realizando há anos,
precisamente desde 1985, Sérgio Lima. Tal pesquisa apresenta-se em quatro
extensos volumes, acompanhados de uma rica iconografia. O que se publica neste
momento é tão-somente o volume inicial, que se detém no estudo dos aspectos
fundamentais do Surrealismo. Trata-se do volume onde são abordados os aspectos
críticos e históricos do movimento, sobretudo aqueles detalhes preciosos que
foram sendo intencionalmente borrados, ao longo dos tempos, por circunstâncias
alheias à aventura surrealista em si.
Como esclarece o autor, em texto que intitula “Aviso prévio”, a
exposição de princípios de que trata este volume introdutório “assinala mais os
aspectos-chave de uma atuação, a do Surrealismo, a de um panorama de atividades
surrealistas, do que um mapeamento enciclopédico de meras conceituações
preestabelecidas, salientando ainda, com lucidez, que “a importante presença
significante de um universo solicita a sua exaltação lírica, solicita os pontos
de vista para a maravilhosa aventura em aberto, a partir de sua configuração mesma”.
No decorrer dos quatro volumes que compõem a pesquisa de Sérgio Lima
vamos nos deparando com uma sucessão de recuperações de várias deformidades do
Surrealismo, a exemplo de questões diretamente vinculadas à escrita automática
e à imagem, assim como as discussões em torno de sua presença no Brasil etc.,
constituindo-se afinal na mais rica fonte de abrangência, exposição e avaliação
crítica do movimento, propiciando o restabelecimento de seu verdadeiro quadro
histórico, bem como de seu processo criador e sua ação revolucionária.
Além dos textos que compõem o volume inicial, a pesquisa engloba ainda
um levantamento histórico e bibliográfico, sistematicamente acompanhado por
comentários e mostra de obras, incluindo uma história sincrônica do Surrealismo
em toda a América Latina, nos Estados Unidos, na Espanha e em Portugal – lembra
o autor, a este respeito, a necessidade de ressaltar “as interações por via de
regra omitidas pela apresentação convencional em compartimentos estanques das
diversas etapas e aspectos do mesmo processo” –, concluindo com um mapeamento
das vertentes constituintes do Surrealismo nos desdobramentos da poesia no
Brasil, onde apresenta-se uma seleção – sempre ladeada por criteriosos e
indispensáveis comentários – de depoimentos sobre o movimento na literatura e
nas artes em nosso país, além de uma antologia de textos, desde seus
prenunciadores, a exemplo de Augusto dos Anjos e Qorpo Santo, até os dias de
hoje.
Estas breves observações que aqui fazemos deverão situar o leitor diante
da extrema importância de uma obra como esta, lembrando ser A aventura surrealista uma inestimável
fonte de referências para todo aquele que pretenda inteirar-se do Surrealismo,
bem como deliciar-se com os desdobramentos desta aventura maior de nosso século.
É válido ainda lembrar que o livro em si, cada um de seus volumes,
constitui um objeto de rara beleza, não podendo ser diferente, sobretudo se
pensarmos na defesa que fazia o Surrealismo do livro como objeto. Neste
sentido, a falha lamentável da edição, que certamente será corrigida a partir
da publicação do segundo volume, é que não se tenha registrado que tanto a
concepção de capa quanto o projeto gráfico em sua totalidade são de autoria do
próprio Sérgio Lima, também ele, além de poeta, pesquisador e tradutor, um
excelente artista plástico.
Esta primeira visita crítica que fazemos ao livro não possui outra
finalidade que não seja a de alertar o leitor para o essencial de sua leitura,
cuidando aqui tão-somente de registrar, em forma de breves tópicos, alguns de seus
aspectos mais relevantes. Em um outro momento, certamente, encontraremos as
condições necessárias para ampliar o diálogo com esta belíssima obra que ora se
publica, A aventura surrealista, de
Sérgio Lima.
[1996]
[Incluído
no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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