domingo, 24 de agosto de 2014

ROSA ALICE BRANCO | O grão dos sentidos



Assim como em cummings toda grave voz poética indaga sobre como é possível pôr em dúvida a existência humana. Porém cummings envolvia esse questionamento com todos os sentidos: tasting touching hearing seeing breathing,[1] como se deixasse bem claro que só podemos tocar o que seja se o fazemos em sua totalidade, seja a totalidade do que tocamos seja a nossa própria totalidade, a de quem se dispõe a experimentar o mundo em sua integridade. Em qualquer circunstância, o que se diz é que a existência humana não é para ser percebida ou vivida a meio grão.
Por um ardil falaz se poderia dizer que os poetas são tão distintos entre si que parecem ser uma mesma voz. Não no que desfiam em versos, não na arquitetura de sombras com que tecem a poética que os individua, mas na idéia que fazem da existência. A depender da época, com suas reverberações na maneira de cada um perceber o que está à sua volta e em seu íntimo, é imensa a distância entre uma coisa e outra: a penumbra do verso, a penumbra do existir. Embora em alguns momentos o poema seja apartado da vida, em muitos casos considerado um artefato da linguagem, talvez imaginando que a linguagem não pertença à condição humana, que possa ter vida própria e que nos defina por sua própria força e graça, é quando menos oportuno indagar, nesses casos, de onde surge essa forma autóctone de expressão, de afirmação de contato com o ser humano.
O próprio título deste livro de Rosa Alice Branco nos indica um caminho a ser tomado, ou quando a ouvimos falar do significado – para ela – dessa imagem que anuncia: “soletrar o dia é sobretudo saborear ou degustar o dia sem expectativas a preencher. Não é tanto exaltar o mínimo, mas sentir o mínimo como exaltante, saber que cada fragmento é uma totalidade aberta.”[2] E logo veremos em toda a sua poesia que não há outra maneira de estar nesse mínimo senão com todos os sentidos. Como então afastar da vida o poema, torná-lo apenas um artifício literário? E de que nos serve viver se nos confundimos com esse poema convertido em linguagem isolada da existência?
E estar no mundo requer um especial sentido de desorientação, pois há toda uma trama de sinais, símbolos, imagens que primam pela orientação a ponto de nos desfazermos de nós em caráter quase irrecuperável. A própria Rosa Alice Branco, ao escrever sobre o artista plástico Júlio Resende, observa que a comunicação requer doação, e diz que “ao abrirmo-nos ao mundo com todos os sentidos, o mundo abre-se para nós e tudo o que era mudo se torna musical, colorido, aromático, vivo e cheio de sentido”.[3] Este sentido de entrega não deixa de ser uma recusa, a recusa de adaptar-se a um cromatismo artificial da existência, ao mesmo tempo em que também se mostra com uma transparente generosidade que encarna toda a diversidade essencial destinada a fazer com que as coisas se ponham de pé, através do olhar, do cheiro, do sabor, do toque, do som, mas que sobretudo percebamos, através de seu ato (o poema), que nada poderá ser lido ausente da perspectiva humana, ausente da própria idéia que faz de si o leitor.
Esta me parece a afirmação mais substantiva da poética de Rosa Alice Branco, a de que todos os sentidos são táteis. As leituras adentradas em grutas filosóficas ou estéticas, atentando para demandas místicas ou metapoéticas, ajudam parcialmente a soletrar o dia dessa mulher que escreve com toda a fluidez com que se deixa viver. O domínio de uma linguagem, que ela o tem com depurado esmero, não lhe inventa ou determina os passos. Assim como ela toca tudo o que sente, não pode compreender sua poética ausente dessa condição tátil a que me refiro. Diz com todos os verbos: é preciso tocar a imaginação e deixar-se tocar por ela. Não abole a transcendência, claro está, mas lhe diz com toda a clareza que ela não poderá jamais ser alguém sem a imanência.
Esta maneira de ser de sua poética nos leva a uma outra observação, a de que seu diálogo com a imagem (no sentido de representação do mundo visível) não se dá através da fixidez da fotografia mas antes da vertigem dos fotogramas, do movimento contínuo do cinema. Não há nada fixo nessa poética, tudo está medido por uma voracidade que é própria da vida mais comum, não a sobrevida com a qual nos confundimos no dia a dia, mas o desmantelo das expectativas, o deixar-se viver, a idéia interminável do projeto existencial, o prolongar-se graças à intensidade do instante. Rosa Alice Branco não chama a atenção para isto em isolado, como fragmento de um discurso, antes está ali a soletrar-se, a entranhar-se com quem quer que seja seu leitor, a começar por ela mesma, a misturar-se a ele na mesma afirmação de ser.
Para o leitor brasileiro que ora a descobre, me parece importante que não se atenha a tradição ou ruptura, que apenas se deixe tocar, à flor da pele, pela maneira como esta poeta se dispôs a soletrar o dia. Decerto a leitura desta poesia nos levará a perceber que os artifícios de linguagem são a mesma face de nossa existência à míngua, do meio grão de nossa voz, da tamanha precariedade em que transformamos nossa vida. Não é certo pedir à poesia que nos salve, que nos redima. Ela não existe sem nós. O homem chegou aonde chegou por sua própria responsabilidade. Que trate agora de re-aprender a soletrar o dia.

[2004]

[Prólogo do livro Soletrar o dia, de Rosa Alice Branco (São Paulo: Escrituras Editora, 2004).]





[1] Passagem do poema “i thank You God” – do livro XAIPE (1950) -, cujo verso, na íntegra, indaga: “como poderia saboreando tocando ouvindo vendo / respirando qualquer – erguido do não / de todo o nada – ser simplesmente humano / duvidar inimaginável de Ti?” (xix poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 1991), na tradução de Jorge Fazenda Lourenço.
[2] “Rosa Alice Branco: estou sempre a escrever-me”. Entrevista concedida a Ana Marques Gastão. Diário de Notícias, Lisboa, 23/11/2003.
[3] “Júlio Resende: histórias do sentir”. Revista Agulha # 37 (www.revista.agulha.nom.br), Fortaleza/São Paulo. Janeiro de 2004.

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