segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ENRIQUE MOLINA | O invulnerável mito da poesia

Como aperfeiçoar em nós os deuses? Como dar à finitude da existência um frescor de imortalidade? Ao entoar cantos à memória fascinante de todas as coisas, a poesia estala em nós os ecos de uma magia perdida entre a maioria dos homens: somos os verdadeiros deuses de toda ordem de movimento no universo. Atração profunda pelo desconhecido, ruptura constante de todos os limites, as vozes errantes da poesia, vindas de todas as partes do planeta e da concha elementar de todas as eras, arrastam-nos com um furor só equivalente ao néctar vital de que se alimentavam os deuses nos mistérios eleusinos. Esse tremor cerimonial que provoca em nós no acesso de sua revelação, essa lótus incandescente que brota do húmus de nosso desejo, a grave violência de um conhecimento que unifica os cenários da realidade e do sonho, não é outra a dimensão em que age a poesia. Portanto, aquele que aprendeu a ler suas mensagens está pronto a negar toda a imobilidade ao seu redor.
Onde pousa mais avidamente a mão do Surrealismo na poesia de Enrique Molina (1910-1996) é no fecundo choque do homem com sua realidade, no impacto provocado pela consciência da condição humana. A busca de uma expressão que interrogue o mais veementemente possível sobre a catástrofe vertiginosa que rege a essência do ser, esta nos parece a imagem que melhor define sua poética. Ele próprio nos dirá que “a essência da poesia não pode ser outra que a de um inconformismo essencial, um permanente gesto de desafio à condição humana”. A partir deste insaciável pulsar, de seus severos focos de destruição, a poesia pode então erguer seu mundo verbal, imprimindo assim o sopro absoluto de suas revelações. Dialogar com a poesia de Enrique Molina é aventurar-se em busca dos insondáveis abismos da existência. O desamparo do tempo, as lágrimas ocultas da morte, os racimos ruidosos do silêncio, a pele em chamas dos objetos que nos observam mundo abaixo – seguimos impregnados de todas essas metáforas vitais na fluência de um a outro poema, na apaixonada e voluptuosa correnteza de seus versos.
Guillermo Sucre, em seu indispensável e hoje raro La máscara, la transparencia (1975), nos lembra acertadamente que a busca essencial de Molina reside em “fazer da intensidade e da paixão uma espécie de divindade invulnerável”. Desde seu primeiro livro, Las cosas y el delirio (1941), já nos acenam os signos básicos de sua poesia: a paixão pelo exílio (que toma corpo no inesgotável inventário de suas viagens), a transpiração do erótico, a múltipla transgressão do tempo (e suas normas e máscaras), a mítica exultante de suas metáforas, tudo isto sendo irradiado desde uma linguagem de avassalador impulso imaginário, de fluidez cortante e reveladora. Fidelíssimo à matéria do delírio e das errâncias – ele próprio declarou levar consigo “um sentido de errância permanente” –, seus demais livros teriam por título a substância inaugural de sua própria poética: Pasiones terrestres (1946), Costumbres errantes o la redondez de la tierra (1951), Amantes antípodas (1961), Las bellas fúrias (1966) e El ala de la gaviota (1989). Sua obra poética, tanto quanto sua própria vida, estariam assim traçadas a fogo por um destino: a fundação de uma realidade a partir do assombro ante sua própria visão. A interrogação latente e vertiginosa que imprime ao mundo o ritmo de sua reflexão e expansão. Os estalidos da memória revelando o semblante de todas as coisas arrancadas de seu caos original. Operação virtual e evidente de toda poesia que se quer tão plena quanto o viver.
Significativa parcela de críticos refere-se ao fato de que, embora tenha sido tocado pelo Surrealismo, não se encontra em Enrique Molina sinais de sujeição a ortodoxia de espécie alguma. Defendo que a grande e atual poesia de inspiração surrealista vem sendo exatamente realizada na América Latina, seja a do peruano Emilio Adolfo Westphalen (1911), dos chilenos Enrique Gómez-Correa (1915-1995) e Ludwig Zeller (1927), do brasileiro Sérgio Lima (1939), da argentina Olga Orozco (1920) ou a do próprio Molina, não havendo em nenhum deles sinais do que se convencionou chamar “surrealismo ortodoxo” – lembremos que o Surrealismo em si é a negação veemente a toda ortodoxia. É certo que a América Latina o impregnou com sua vegetação carnal, sua magia turbulenta e alucinante, suas prolongadas ondas de enigma incandescente, tornando ainda mais ingênua e arbitrária tal comparação.
São indiscutíveis, por outro lado, as contribuições de Enrique Molina para a formação de uma cosmovisão surrealista na América Hispânica, sejam através da fundação – ao lado de outro notável poeta, Aldo Pellegrini (1903-1973) – da revista A partir de cero (1962), de sua participação na magnífica exposição de arte surrealista realizada em Buenos Aires pelo Instituto Di Tella (1967) ou mesmo das ideias expressas no fascinante prefácio às Obras completas (1968) de Oliverio Girondo, isto sem nos esquecermos de suas inúmeras entrevistas e conferências. De qualquer forma, no que devemos nos deter é em sua obra poética – Molina publicou um único romance (Una sombra donde sueña Camila O’Gorman, 1975) –, no intenso caudal de relações que esta mantém com o Surrealismo. O diálogo do homem com a realidade somente será possível em um cenário de assombro e soberana ruptura com os sucessivos limites com que se depara. Somente assim o homem reencontrará em si um abandonado deus e uma criança plena de imortalidade. A poesia de Enrique Molina terá sempre por signo essencial esta vertigem poderosa que reinaugura o mundo a cada golpe do assombro. Quaisquer que sejam as perguntas, nos dirá sempre, a aventura é a única resposta.

[1988]


[Incluído no livro O Começo da Busca - O surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2001).]

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