Como aperfeiçoar em
nós os deuses? Como dar à finitude da existência um frescor de imortalidade? Ao
entoar cantos à memória fascinante de todas as coisas, a poesia estala em nós
os ecos de uma magia perdida entre a maioria dos homens: somos os verdadeiros
deuses de toda ordem de movimento no universo. Atração profunda pelo
desconhecido, ruptura constante de todos os limites, as vozes errantes da
poesia, vindas de todas as partes do planeta e da concha elementar de todas as
eras, arrastam-nos com um furor só equivalente ao néctar vital de que se
alimentavam os deuses nos mistérios eleusinos. Esse tremor cerimonial que provoca
em nós no acesso de sua revelação, essa lótus incandescente que brota do húmus
de nosso desejo, a grave violência de um conhecimento que unifica os cenários
da realidade e do sonho, não é outra a dimensão em que age a poesia. Portanto,
aquele que aprendeu a ler suas mensagens está pronto a negar toda a imobilidade
ao seu redor.
Onde pousa mais avidamente a mão do Surrealismo na poesia de Enrique
Molina (1910-1996) é no fecundo choque do homem com sua realidade, no impacto
provocado pela consciência da condição humana. A busca de uma expressão que
interrogue o mais veementemente possível sobre a catástrofe vertiginosa que
rege a essência do ser, esta nos parece a imagem que melhor define sua poética.
Ele próprio nos dirá que “a essência da poesia não pode ser outra que a de um
inconformismo essencial, um permanente gesto de desafio à condição humana”. A
partir deste insaciável pulsar, de seus severos focos de destruição, a poesia
pode então erguer seu mundo verbal, imprimindo assim o sopro absoluto de suas
revelações. Dialogar com a poesia de Enrique Molina é aventurar-se em busca dos
insondáveis abismos da existência. O desamparo do tempo, as lágrimas ocultas da
morte, os racimos ruidosos do silêncio, a pele em chamas dos objetos que nos
observam mundo abaixo – seguimos impregnados de todas essas metáforas vitais na
fluência de um a outro poema, na apaixonada e voluptuosa correnteza de seus
versos.
Guillermo Sucre, em seu indispensável e hoje raro La máscara, la transparencia (1975), nos lembra acertadamente que a
busca essencial de Molina reside em “fazer da intensidade e da paixão uma
espécie de divindade invulnerável”. Desde seu primeiro livro, Las cosas y el delirio (1941), já nos
acenam os signos básicos de sua poesia: a paixão pelo exílio (que toma corpo no
inesgotável inventário de suas viagens), a transpiração do erótico, a múltipla
transgressão do tempo (e suas normas e máscaras), a mítica exultante de suas
metáforas, tudo isto sendo irradiado desde uma linguagem de avassalador impulso
imaginário, de fluidez cortante e reveladora. Fidelíssimo à matéria do delírio
e das errâncias – ele próprio declarou levar consigo “um sentido de errância
permanente” –, seus demais livros teriam por título a substância inaugural de
sua própria poética: Pasiones terrestres
(1946), Costumbres errantes o la redondez
de la tierra (1951), Amantes
antípodas (1961), Las bellas fúrias
(1966) e El ala de la gaviota (1989).
Sua obra poética, tanto quanto sua própria vida, estariam assim traçadas a fogo
por um destino: a fundação de uma realidade a partir do assombro ante sua
própria visão. A interrogação latente e vertiginosa que imprime ao mundo o
ritmo de sua reflexão e expansão. Os estalidos da memória revelando o semblante
de todas as coisas arrancadas de seu caos original. Operação virtual e evidente
de toda poesia que se quer tão plena quanto o viver.
Significativa parcela de críticos refere-se ao fato de que, embora tenha
sido tocado pelo Surrealismo, não se encontra em Enrique Molina
sinais de sujeição a ortodoxia de espécie alguma. Defendo que a grande e atual
poesia de inspiração surrealista vem sendo exatamente realizada na América
Latina, seja a do peruano Emilio Adolfo Westphalen (1911), dos chilenos Enrique
Gómez-Correa (1915-1995) e Ludwig Zeller (1927), do brasileiro Sérgio Lima
(1939), da argentina Olga Orozco (1920) ou a do próprio Molina, não havendo em
nenhum deles sinais do que se convencionou chamar “surrealismo ortodoxo” –
lembremos que o Surrealismo em si é a negação veemente a toda ortodoxia. É
certo que a América Latina o impregnou com sua vegetação carnal, sua magia
turbulenta e alucinante, suas prolongadas ondas de enigma incandescente,
tornando ainda mais ingênua e arbitrária tal comparação.
São indiscutíveis, por outro lado, as contribuições de Enrique Molina
para a formação de uma cosmovisão surrealista na América Hispânica, sejam
através da fundação – ao lado de outro notável poeta, Aldo Pellegrini
(1903-1973) – da revista A partir de cero
(1962), de sua participação na magnífica exposição de arte surrealista
realizada em Buenos Aires
pelo Instituto Di Tella (1967) ou mesmo das ideias expressas no fascinante
prefácio às Obras completas (1968) de
Oliverio Girondo, isto sem nos esquecermos de suas inúmeras entrevistas e
conferências. De qualquer forma, no que devemos nos deter é em sua obra poética
– Molina publicou um único romance (Una
sombra donde sueña Camila O’Gorman, 1975) –, no intenso caudal de relações
que esta mantém com o Surrealismo. O diálogo do homem com a realidade somente
será possível em um cenário de assombro e soberana ruptura com os sucessivos
limites com que se depara. Somente assim o homem reencontrará em si um
abandonado deus e uma criança plena de imortalidade. A poesia de Enrique Molina
terá sempre por signo essencial esta vertigem poderosa que reinaugura o mundo a
cada golpe do assombro. Quaisquer que sejam as perguntas, nos dirá sempre, a
aventura é a única resposta.
[1988]
[Incluído
no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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