sábado, 9 de maio de 2015

O CORAÇÃO DOS OUTROS, de Celso de Alencar

Este é um livro de parábolas. Ou talvez seja apenas uma única, extensa e sinuosa parábola, em cujo interior flanam os elementos mais simples que nos convidam a descobrir um mundo oculto um pouco além de suas formas visíveis. Certa vez disse Raúl González Tuñón que Rimbaud enterrou a poesia em algum lugar desconhecido e que desde então o futuro a está esperando. Porém a poesia não acontece no futuro. Quando melhor aponta em sua direção é quando bem cuida das hortaliças e ervas daninhas de seu próprio tempo. A parábola a cuja decifração nos convida Celso de Alencar encontra-se marcada por uma hábil travessia do olhar, que vai de um ponto a outro da história de nossas vidas, até a conciliação mágica com aquele espectro em que se encaixam todas as vidas e assumem a essência de uma cartografia reveladora da própria humanidade. Um mapa cujo tesouro é ele próprio. O poeta faz com que habitem esse mapa sigiloso os personagens vários da memória, do vislumbre e do sonho. Faz com que os poemas se disfarcem em minúcias da existência de cada um deles. Os poemas flanam por dentro da paisagem transfigurada do livro, de tal modo que não os vemos como circunscritos às páginas que ocupam. Estão por todas as partes e se movem mascando segredos e traçando novos semblantes em que se multiplicam como uma cidade que não para de crescer. E sua jornada não é apenas a da habilidade discursiva. Transcorrem em uma linguagem cuja astúcia maior está em vencer o tempo. Estes poemas foram escritos há mais de um século e no entanto estão repletos de futuro. Sabem desentranhar a parte que lhes é fundamental na vida mais íntima da poesia. Sabem de onde vêm e qual futuro os aguarda a partir do momento em que são enterrados bem diante de nosso olhar. Como nos diz orgulhoso de seus princípios um dos personagens: "Eu nunca dei presentes a mortos". Este livro é um saltério feliz que regala presentes aos vivos, porém na forma de enigmas, de retalhos da existência que são as peças avulsas cujo significado só se deixa revelar aos que percebem seus enlaces, entroncamentos e gravitações. Somente aí compreendemos a raiz dessa parábola tecida por Celso de Alencar e o quanto que ela evoca e participa da fantástica aventura do homem sobre a terra. 



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Orelhas do livro O coração dos outros, de Celso de Alencar. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.