Este é um livro de parábolas. Ou talvez seja apenas uma
única, extensa e sinuosa parábola, em cujo interior flanam os elementos mais
simples que nos convidam a descobrir um mundo oculto um pouco além de suas
formas visíveis. Certa vez disse Raúl González Tuñón que Rimbaud enterrou a
poesia em algum lugar desconhecido e que desde então o futuro a está esperando.
Porém a poesia não acontece no futuro. Quando melhor aponta em sua direção é
quando bem cuida das hortaliças e ervas daninhas de seu próprio tempo. A
parábola a cuja decifração nos convida Celso de Alencar encontra-se marcada por
uma hábil travessia do olhar, que vai de um ponto a outro da história de nossas
vidas, até a conciliação mágica com aquele espectro em que se encaixam todas as
vidas e assumem a essência de uma cartografia reveladora da própria humanidade.
Um mapa cujo tesouro é ele próprio. O poeta faz com que habitem esse mapa
sigiloso os personagens vários da memória, do vislumbre e do sonho. Faz com que
os poemas se disfarcem em minúcias da existência de cada um deles. Os poemas
flanam por dentro da paisagem transfigurada do livro, de tal modo que não os
vemos como circunscritos às páginas que ocupam. Estão por todas as partes e se
movem mascando segredos e traçando novos semblantes em que se multiplicam como
uma cidade que não para de crescer. E sua jornada não é apenas a da habilidade
discursiva. Transcorrem em uma linguagem cuja astúcia maior está em vencer o
tempo. Estes poemas foram escritos há mais de um século e no entanto estão
repletos de futuro. Sabem desentranhar a parte que lhes é fundamental na vida mais
íntima da poesia. Sabem de onde vêm e qual futuro os aguarda a partir do
momento em que são enterrados bem diante de nosso olhar. Como nos diz orgulhoso
de seus princípios um dos personagens: "Eu nunca dei presentes a
mortos". Este livro é um saltério feliz que regala presentes aos vivos,
porém na forma de enigmas, de retalhos da existência que são as peças avulsas
cujo significado só se deixa revelar aos que percebem seus enlaces,
entroncamentos e gravitações. Somente aí compreendemos a raiz dessa parábola
tecida por Celso de Alencar e o quanto que ela evoca e participa da fantástica
aventura do homem sobre a terra.
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Orelhas do livro O coração dos outros, de Celso de Alencar. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
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