quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

FLORIANO MARTINS | O que tem sido minha poesia

Nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu.

Aquinauta
  
O grande instante em que revelou-se diante de mim as portas da expressão poética no sentido em que a compreendo deu-se através da leitura de Blake. Ali estavam os traços de uma épica da maldição, uma sedutora leitura da treva. Ordenava-se então diante de mim uma fascinante concepção do mundo a partir da genealogia do bardo inglês. Foi o grande estalo para a compulsiva constituição de duas ou três personas, que passariam a representar a sustentação de uma poética nascedoura. O diálogo com o mundo era fecundo em sua multiplicidade. A herança paterna de uma vastíssima biblioteca aliada a um interesse crescente pela música, o teatro e a pintura. Modelou-se assim, aos poucos, uma disposição maior para combater o preconceito ou simplesmente evitar pequenos ardis da iconoclastia. Sempre preso à aventura pessoal, fui-me distanciando das experiências comuns à época, esquivando-me à rotina de minha própria geração.
Jamais me seduziu a ideia de aquisição intelectual tão-somente como um requisito estratégico. De grande valor, portanto, me foi sempre o dístico do sábio Aquinauta: extinta a vida dos sentidos, nada mais nos resta no espírito. O instinto natural de subversão nos leva a ouvir o outro, a contraí-lo enquanto perversão essencial à sua própria existência. Desta forma escapei de uma ideologia narcisista, de elogio ao próprio umbigo. Na primeira adolescência li o mesmo Drummond de todos, o mesmo Pessoa, o mesmo Bandeira. Costuma-se metaforizar a leitura, espoliar-lhe uma perversão que não é capaz de suportar. Antes é preciso entender que o homem age sempre contra si mesmo. Se linguagem é código, o símbolo radica na crueldade de seu exercício. Como entender a poesia sem perceber os desvios dialéticos de uma ostensiva profanação da própria essência do ser?
Diria que meus verdadeiros pares – os diálogos essenciais da poesia em mim – fui encontrar em distintos referenciais estéticos: os brasileiros José Santiago Naud, Ivan Junqueira, Uílcon Pereira e Sérgio Campos, os argentinos Juan Gelman e Leónidas Lamborghini, o chileno Ludwig Zeller, o catalão Josep-Ramón Bach, o cubano José Kozer. Seja pela leitura instigante de seus livros ou pela conversa possível com eles próprios, deliciosa na debulha de um curso existencial. A estas somaram-se outras vozes fundamentais, onde destaco a presença constante do crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón. Este múltiplo aprendizado, ao lado natural de um caudal de leituras igualmente diversificado, foram confirmando, ao longo de pouco mais de uma década, uma ética e uma estética, indissociadas. Uma possível estranheza na leitura de minha poética advirá certamente de sua ambição referencial, chamemos isto de originalidade de códigos ou de recusa a filiações a correntes dominantes.
Meu próprio vínculo ao surrealismo não vem de uma suposta recaída escolástica, até porque o surrealismo pode ser tudo menos uma escola literária. O que sempre me indignou no comportamento dos poetas brasileiros é sua capacidade de não comprometimento. Posam de franco-atiradores, ao mesmo tempo em que vivem à espera da grande oportunidade de pactuação com o poder literário. Aderi ao surrealismo basicamente por aversão a isso, mescla de indignação e provocação diante da falta de firmeza ética característica da intelectualidade brasileira.
Do ponto de vista estético naturalmente o surrealismo que desembocou na América Hispânica é muito distinto de sua origem parisiense. A própria relação entre história e cultura evidencia uma inversão de polaridade. Na Europa partiu-se de uma derrocada, enquanto que nos países hispano-americanos a tônica foi uma exacerbada fé em seu próprio destino. Niilismo versus prosperidade. Velho e novo mundo. Além disto a fundamentação estética da cultura hispano-americana encontrava-se então muito arraigada ao Barroco, e o relacionamento com a insurreição surrealista em muito a fortaleceu. Fortíssimo também foi o vínculo com o romantismo alemão – já anterior à acolhida dessa corrente pelos surrealistas franceses. Na base de tais relações encontramos poéticas que definem a inquestionável representação daquele período: Emilio Adolfo Westphalen, José Lezama Lima, Octavio Paz, Enrique Molina, Humberto Díaz-Casanueva, Luis Cardoza y Aragón, Pablo Antonio Cuadra, Vicente Gerbasi, Rogelio Sinán. No encontro com todas essas vozes fui aguçando minha inclinação pelo diálogo como fonte de enriquecimento da linguagem poética.
A figura astuciosamente polêmica de Borges indignou a muitos por sua rejeição ao período ultraísta, relegado por ele a mera aventura juvenil. Na outra ponta do raio, Neruda confirmou sempre sua falta de caráter, constatável sobretudo através da gangorra estilística que define sua obra. Em meio terreno, a polida política de Octavio Paz. O entendimento no Brasil da poesia hispano-americana não vai além da ambientação desse tríptico. Tão forte se mostra tal referência que à entrada de cada novo nome sempre se busca enquadrá-lo em uma das três angulações. Borges, Neruda, Paz deveriam equivaler – evidentemente que não em termos estéticos e sim no âmbito de um traçado canônico – a Oswald, Drummond, Cabral. Não encontramos, no entanto, na poesia hispano-americana contemporânea, vestígios de um epigonismo tão patente quanto o que se verifica hoje na poesia brasileira. Aqui incorremos sempre no desastre da mimetização. Terá a cópia da cópia cem anos de perdão? Toda a força lírica de nossa tradição poética foi transmutada em sub-expressão. De maneira inaceitavelmente escassa dá-se a percepção da preciosidade do espólio da poesia brasileira. Por sua vez, a política cultural praticada no Brasil não busca senão a evidência do falso valor, fundado em uma estereotipia ou no velho ramo de importação de pedras falsas para os porcos de casa. Nenhuma poesia sobrevive a isto.
O resto é decurso de prazo, balanço de tramas. Todo surto epigônico nacional oscila entre Oswald de Andrade e o Concretismo, cuja síntese centra-se ainda na obra de João Cabral de Melo Neto. Esgota-se toda auto-estima, toda consistência filosófica, toda expectativa de diálogo com o mundo. Naturalmente não me refiro a um programa político, e sim à maneira simplória com que nos desfazemos de nós mesmos. Refiro-me a toda a previsibilidade dos versos arrebanhadores de prêmios, dísticos, soluços, rimários, primor xerográfico, à preguiça mental evidenciada pelo epigrama dominical e à presunção do hai-kai. Refiro-me a puro e simples retrocesso. Desaprendemos a fazer poesia. Não alimentamos senão um ideal fraudado de nós mesmos. Cumplicidade com o efêmero, alheia à essencial firmeza de caráter imprescindível à formação de toda cultura.
Em meio a tudo isto fui tecendo o que Jorge Rodríguez Padrón certa vez estimou como sendo “complexa maturidade formal”, na verdade uma ambiciosa aposta de filiar complexidade técnica a experiência existencial. O corpo do poema como lugar de desenvolvimento da vida em si. A tudo recolhe a linguagem e lhe dá a dimensão de sua própria respiração. Desde Shakespeare a defesa de que a presença de determinadas personae fundamenta a estrutura de toda poesia. Firmeza ulterior, ao mesmo tempo em que distanciamento do ego. Deve então o poema propiciar um diálogo e não firmar-se como receituário. A partir daí fui compreendendo a importância de manifestar poeticamente a experiência pessoal, não sem evitar o decorrente ardil de contá-la, tendo em vista que essencialmente ali interessa desvelar a razão de seu próprio ser, e que tal operação se fundamente na maneira especial de agir, em sua singularidade, o que, por sua vez, reflete o compromisso com uma ambição de recolhimento de todos os sinais à sua volta, assim como sua intensidade fundante, sua aspiração por uma multiplicidade de leituras, métodos, códigos, fabulações etc.
Cabe a esta altura dizer que minha individuação dá-se justamente pela associação hábil de traços, escrituras, motivações, vestimentas, de todas as inúmeras formas de diálogo que estabeleço com o mundo. Tudo emerge de um sangradouro de palimpsestos. De um verso de antigo poema, Sérgio Campos extraiu o que denominou como sendo a “chave de tal escritura polissêmica”: tenho a alma em chamas. E disse ali encontrar, “nessa metáfora ígnea, a revelação surrealista epidérmica, sensorial, a força da palavra do exilado na escritura de sua maldição, e a invocação de um romântico em êxtase, esgotada, possivelmente, em pleno trânsito até o símbolo, nas fronteiras de Rimbaud”.
Desde sua leitura ficou claro que tal metáfora definiria com exatidão uma recolha possível de minha poética. Nenhum outro amigo acompanhou tão de perto as irradiações de meus embates com Bosch, Brueghel, Pirandello, Dostoievsky, Lezama, Pessoa, Frank Zappa, Keith Jarrett. Minhas portas da percepção abriam-se para o convívio com a música, a pintura e a literatura. A escritura poética não é senão a forma única de resistência, do sangue e do espírito, com a qual nos unimos ao mundo, em busca da permanência de sua estoica caminhada. Na viagem, emergem ritmos, discursos, similitudes, dissonâncias, alegorias, o que mais regule a fantasia humana. O emblema da alma em chamas não repercute senão uma recusa austera à morte em vida, ao alinhamento a esta ou aquela corrente dominante.
Creio que a visceralidade da escritura poética pode muito bem somar as proposições de Bachelard e Calvino, visto que a ideia que temos de nós mesmos é uma mescla de devaneio e exatidão. Do que não podemos nos despir, sob pena de negação da própria espécie humana, é da função dos sentidos, de seu alcance e significação. A impressão que me passa atualmente a poesia brasileira é a de uma incapacidade de recorrer à linguagem para transcender o equívoco de uma dirigida uniformização de valores. Reduz-se então todo o processo criativo a uma compactuação simbólica, configurando-se aí tão-somente uma limitação doutrinária da própria natureza humana.
Toda a poesia que se cultua no Brasil atualmente parece-me uma negação do ser, em grande parte propiciada pela frouxidão do arco. As imagens soldam em seu corpo as mais diversas formas de apreensão da realidade. O poema será sempre a expressão genuína desse suntuoso paradoxo. As explicações sentam e esperam. Não se trata de Guernica e sim dos carvões de Goya. Em precárias afirmações desgasta-se o mundo ao mesmo tempo em que se refaz em sutilíssimas sugestões. A palavra não fundamenta-se em si mesma e sim na imagem que a rasga de um ponto a outro na escala dos sentidos. Ambientá-la entre lasciva e consternada, desbragada e solene, não define coerentemente as possibilidades de comunhão com a mescla de devaneio e exatidão que encarnam.
Por último, um grande desafio que sempre me seduziu dá-se na fusão de elementos característicos da tragédia e da lírica – sem descuidar jamais da acentuada concentração dos recursos empregados, de maneira a evitar toda e qualquer digressão que venha a comprometer tensão dramática e densidade imagética. Indispensável, portanto, a presença de certos recursos, a exemplo da constituição de personae e da ambientação poética a partir do desempenho de uma formulação ética reconhecida (por mim) como tal. Equação dificultada pela dificuldade mental da compreensão do humano em nós. Como defender uma razão de ser em uma época caracterizada pela sistemática descaracterização do ser? Concebo então minha estoica aventura como qualquer outra: uma imposição ao reconhecimento de si mesmo.



[Prólogo do livro Alma em chamas, de Floriano Martins. Fortaleza: Letra & Mùsica, 1998.]


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