Nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu.
Aquinauta
O grande instante em que revelou-se
diante de mim as portas da expressão poética no sentido em que a compreendo
deu-se através da leitura de Blake. Ali estavam os traços de uma épica da
maldição, uma sedutora leitura da treva. Ordenava-se então diante de mim uma
fascinante concepção do mundo a partir da genealogia do bardo inglês. Foi o
grande estalo para a compulsiva constituição de duas ou três personas, que passariam
a representar a sustentação de uma poética nascedoura. O diálogo com o mundo
era fecundo em sua multiplicidade. A herança paterna de uma vastíssima
biblioteca aliada a um interesse crescente pela música, o teatro e a pintura.
Modelou-se assim, aos poucos, uma disposição maior para combater o preconceito
ou simplesmente evitar pequenos ardis da iconoclastia. Sempre preso à aventura
pessoal, fui-me distanciando das experiências comuns à época, esquivando-me à
rotina de minha própria geração.
Jamais me seduziu a ideia de aquisição
intelectual tão-somente como um requisito estratégico. De grande valor, portanto,
me foi sempre o dístico do sábio Aquinauta: extinta
a vida dos sentidos, nada mais nos resta no espírito. O instinto natural de
subversão nos leva a ouvir o outro, a contraí-lo enquanto perversão essencial à
sua própria existência. Desta forma escapei de uma ideologia narcisista, de
elogio ao próprio umbigo. Na primeira adolescência li o mesmo Drummond de
todos, o mesmo Pessoa, o mesmo Bandeira. Costuma-se metaforizar a leitura, espoliar-lhe
uma perversão que não é capaz de suportar. Antes é preciso entender que o homem
age sempre contra si mesmo. Se linguagem é código, o símbolo radica na
crueldade de seu exercício. Como entender a poesia sem perceber os desvios
dialéticos de uma ostensiva profanação da própria essência do ser?
Diria que meus verdadeiros pares – os
diálogos essenciais da poesia em mim – fui encontrar em distintos referenciais
estéticos: os brasileiros José Santiago Naud, Ivan Junqueira, Uílcon Pereira e
Sérgio Campos, os argentinos Juan Gelman e Leónidas Lamborghini, o chileno
Ludwig Zeller, o catalão Josep-Ramón Bach, o cubano José Kozer. Seja pela
leitura instigante de seus livros ou pela conversa possível com eles próprios,
deliciosa na debulha de um curso existencial. A estas somaram-se outras vozes
fundamentais, onde destaco a presença constante do crítico espanhol Jorge
Rodríguez Padrón. Este múltiplo aprendizado, ao lado natural de um caudal de
leituras igualmente diversificado, foram confirmando, ao longo de pouco mais de
uma década, uma ética e uma estética, indissociadas. Uma possível estranheza na
leitura de minha poética advirá certamente de sua ambição referencial, chamemos
isto de originalidade de códigos ou de recusa a filiações a correntes dominantes.
Meu próprio vínculo ao surrealismo não
vem de uma suposta recaída escolástica, até porque o surrealismo pode ser tudo
menos uma escola literária. O que sempre me indignou no comportamento dos
poetas brasileiros é sua capacidade de não comprometimento. Posam de
franco-atiradores, ao mesmo tempo em que vivem à espera da grande oportunidade
de pactuação com o poder literário. Aderi ao surrealismo basicamente por
aversão a isso, mescla de indignação e provocação diante da falta de firmeza
ética característica da intelectualidade brasileira.
Do ponto de vista estético naturalmente
o surrealismo que desembocou na América Hispânica é muito distinto de sua
origem parisiense. A própria relação entre história e cultura evidencia uma inversão
de polaridade. Na Europa partiu-se de uma derrocada, enquanto que nos países
hispano-americanos a tônica foi uma exacerbada fé em seu próprio destino.
Niilismo versus prosperidade. Velho e
novo mundo. Além disto a fundamentação estética da cultura hispano-americana
encontrava-se então muito arraigada ao Barroco, e o relacionamento com a
insurreição surrealista em muito a fortaleceu. Fortíssimo também foi o vínculo
com o romantismo alemão – já anterior à acolhida dessa corrente pelos
surrealistas franceses. Na base de tais relações encontramos poéticas que
definem a inquestionável representação daquele período: Emilio Adolfo
Westphalen, José Lezama Lima, Octavio Paz, Enrique Molina, Humberto
Díaz-Casanueva, Luis Cardoza y Aragón, Pablo Antonio Cuadra, Vicente Gerbasi, Rogelio
Sinán. No encontro com todas essas vozes fui aguçando minha inclinação pelo
diálogo como fonte de enriquecimento da linguagem poética.
A figura astuciosamente polêmica de
Borges indignou a muitos por sua rejeição ao período ultraísta, relegado por
ele a mera aventura juvenil. Na outra ponta do raio, Neruda confirmou sempre
sua falta de caráter, constatável sobretudo através da gangorra estilística que
define sua obra. Em meio terreno, a polida política de Octavio Paz. O
entendimento no Brasil da poesia hispano-americana não vai além da ambientação
desse tríptico. Tão forte se mostra tal referência que à entrada de cada novo
nome sempre se busca enquadrá-lo em uma das três angulações. Borges, Neruda,
Paz deveriam equivaler – evidentemente que não em termos estéticos e sim no
âmbito de um traçado canônico – a Oswald, Drummond, Cabral. Não encontramos, no
entanto, na poesia hispano-americana contemporânea, vestígios de um epigonismo
tão patente quanto o que se verifica hoje na poesia brasileira. Aqui incorremos
sempre no desastre da mimetização. Terá a cópia da cópia cem anos de perdão?
Toda a força lírica de nossa tradição poética foi transmutada em sub-expressão. De
maneira inaceitavelmente escassa dá-se a percepção da preciosidade do espólio
da poesia brasileira. Por sua vez, a política cultural praticada no Brasil não
busca senão a evidência do falso valor, fundado em uma estereotipia ou no velho
ramo de importação de pedras falsas para os porcos de casa. Nenhuma poesia
sobrevive a isto.
O resto é decurso de prazo, balanço de
tramas. Todo surto epigônico nacional oscila entre Oswald de Andrade e o
Concretismo, cuja síntese centra-se ainda na obra de João Cabral de Melo Neto.
Esgota-se toda auto-estima, toda consistência filosófica, toda expectativa de
diálogo com o mundo. Naturalmente não me refiro a um programa político, e sim à
maneira simplória com que nos desfazemos de nós mesmos. Refiro-me a toda a
previsibilidade dos versos arrebanhadores de prêmios, dísticos, soluços, rimários,
primor xerográfico, à preguiça mental evidenciada pelo epigrama dominical e à
presunção do hai-kai. Refiro-me a puro e simples retrocesso. Desaprendemos a
fazer poesia. Não alimentamos senão um ideal fraudado de nós mesmos.
Cumplicidade com o efêmero, alheia à essencial firmeza de caráter imprescindível
à formação de toda cultura.
Em meio a tudo isto fui tecendo o que
Jorge Rodríguez Padrón certa vez estimou como sendo “complexa maturidade formal”,
na verdade uma ambiciosa aposta de filiar complexidade técnica a experiência
existencial. O corpo do poema como lugar de desenvolvimento da vida em si. A tudo recolhe a
linguagem e lhe dá a dimensão de sua própria respiração. Desde Shakespeare a
defesa de que a presença de determinadas personae fundamenta a estrutura de
toda poesia. Firmeza ulterior, ao mesmo tempo em que distanciamento do ego.
Deve então o poema propiciar um diálogo e não firmar-se como receituário. A
partir daí fui compreendendo a importância de manifestar poeticamente a experiência
pessoal, não sem evitar o decorrente ardil de contá-la, tendo em vista que
essencialmente ali interessa desvelar a razão de seu próprio ser, e que tal
operação se fundamente na maneira especial de agir, em sua singularidade, o
que, por sua vez, reflete o compromisso com uma ambição de recolhimento de
todos os sinais à sua volta, assim como sua intensidade fundante, sua aspiração
por uma multiplicidade de leituras, métodos, códigos, fabulações etc.
Cabe a esta altura dizer que minha
individuação dá-se justamente pela associação hábil de traços, escrituras,
motivações, vestimentas, de todas as inúmeras formas de diálogo que estabeleço
com o mundo. Tudo emerge de um sangradouro de palimpsestos. De um verso de
antigo poema, Sérgio Campos extraiu o que denominou como sendo a “chave de tal
escritura polissêmica”: tenho a alma em chamas. E disse ali encontrar, “nessa metáfora ígnea, a
revelação surrealista epidérmica, sensorial, a força da palavra do exilado na
escritura de sua maldição, e a invocação de um romântico em êxtase, esgotada,
possivelmente, em pleno trânsito até o símbolo, nas fronteiras de Rimbaud”.
Desde sua leitura ficou claro que tal
metáfora definiria com exatidão uma recolha possível de minha poética. Nenhum
outro amigo acompanhou tão de perto as irradiações de meus embates com Bosch,
Brueghel, Pirandello, Dostoievsky, Lezama, Pessoa, Frank Zappa, Keith Jarrett.
Minhas portas da percepção abriam-se para o convívio com a música, a pintura e
a literatura. A escritura poética não é senão a forma única de resistência, do
sangue e do espírito, com a qual nos unimos ao mundo, em busca da permanência
de sua estoica caminhada. Na viagem, emergem ritmos, discursos, similitudes,
dissonâncias, alegorias, o que mais regule a fantasia humana. O emblema da alma em chamas não repercute senão uma
recusa austera à morte em vida, ao alinhamento a esta ou aquela corrente dominante.
Creio que a visceralidade da escritura
poética pode muito bem somar as proposições de Bachelard e Calvino, visto que a
ideia que temos de nós mesmos é uma mescla de devaneio e exatidão. Do que não
podemos nos despir, sob pena de negação da própria espécie humana, é da função
dos sentidos, de seu alcance e significação. A impressão que me passa
atualmente a poesia brasileira é a de uma incapacidade de recorrer à linguagem
para transcender o equívoco de uma dirigida uniformização de valores. Reduz-se
então todo o processo criativo a uma compactuação simbólica, configurando-se aí
tão-somente uma limitação doutrinária da própria natureza humana.
Toda a poesia que se cultua no Brasil atualmente parece-me
uma negação do ser, em grande parte propiciada pela frouxidão do arco. As
imagens soldam em seu corpo as mais diversas formas de apreensão da realidade.
O poema será sempre a expressão genuína desse suntuoso paradoxo. As explicações
sentam e esperam. Não se trata de Guernica
e sim dos carvões de Goya. Em precárias afirmações desgasta-se o mundo ao mesmo
tempo em que se refaz em sutilíssimas sugestões. A palavra não fundamenta-se em
si mesma e sim na imagem que a rasga de um ponto a outro na escala dos
sentidos. Ambientá-la entre lasciva e consternada, desbragada e solene, não
define coerentemente as possibilidades de comunhão com a mescla de devaneio e
exatidão que encarnam.
Por último, um grande desafio que
sempre me seduziu dá-se na fusão de elementos característicos da tragédia e da
lírica – sem descuidar jamais da acentuada concentração dos recursos
empregados, de maneira a evitar toda e qualquer digressão que venha a
comprometer tensão dramática e densidade imagética. Indispensável, portanto, a
presença de certos recursos, a exemplo da constituição de personae e da
ambientação poética a partir do desempenho de uma formulação ética reconhecida
(por mim) como tal. Equação dificultada pela dificuldade mental da compreensão
do humano em nós. Como
defender uma razão de ser em uma época caracterizada pela sistemática
descaracterização do ser? Concebo então minha estoica aventura como qualquer outra:
uma imposição ao reconhecimento de si mesmo.
[Prólogo do livro Alma em chamas, de Floriano Martins. Fortaleza: Letra & Mùsica, 1998.]