Por onde começar? Como suportar as pequenas mortes do início das coisas?
O olhar repousa sobre o dorso da paisagem como se a escutar os rumores da
origem. Antes entendamos a paisagem como esse duplo fascinante do
visível/invisível: o que toca o olhar – um homem com seu cajado de vertigens,
acasalamento de ruínas, caravana de relâmpagos. Pensemos agora no olhar
disparado por uma câmara fotográfica. Também aí a origem toca a si mesma,
pescando fósseis, reconhecendo as estações movediças.
Um dia Salvador Dalí disse que "a fotografia nos oferece mil
imagens fragmentários que dão lugar a um total conhecimento dramático".
Tal observação cabe apenas se levarmos em conta a magia que lhe havia
despertado esse então novo veículo, isto em 1929. A unidade é
buscada em fragmentos e acende sempre uma condição dramática, não importa se
alcançada por uma exposição de fotografias, o ladear de quadros em uma galeria,
poemas em um livro, canções no palco.
O drama radica no espaço de existência, na percepção dessa existência,
no ramo de conflitos que lhe define. O que me interessa em um fotógrafo
(músico, poeta, escultor) é justamente quando ele percebe-se como passagem,
respiradouro do que há de entranhável entre realidade e sonho, dias passados e
dias por viver. Esse rigor ontológico da arte é o que tem sobrevivido aos
tempos.
Em minhas conversas com a fotógrafa Lucy Barbosa
(São Paulo, 1956), o assunto posto à mesa tem sido sempre o da errância como
afirmação do ser, a entrega como estatuto essencial para que o homem caiba em si
mesmo. Sobre essa condição nômade da existência, um dia ela me disse algo
fascinante:
"Nada de fechadura, o ranger da chave não virá de repente fazer
estremecer o cativo, nada está fechado, nada… Que este implacável horizonte,
desmesurado mas hermético, onde nos reflexos fluidos da miragem, nossos
corações, carregados de uma angústia inconfessa, procurarão um sinal, qualquer
coisa, mas algo como um arbusto, um pedregulho, uma sombra, alguma coisa que
nos prove que avançamos no caminho, que não andamos em círculo rebocados por
uma bússola enlouquecida por alguma imprevisível anomalia magnética, e que
estamos nos aproximando do objetivo."
Repete-se a pergunta: por onde começar? O mundo surge, descobre-se e se
refaz no assombro de viver. Somos a chave na exata medida em que a buscamos.
Lucy tem uma adorável consciência dessa errância que lhe caracteriza o
trabalho.
"Antes de tudo sou uma viajante, retrato meus caminhos, amores e,
nos últimos anos, a África é uma presença em minha vida. Quando conheci a
África negra, em 1991, fiquei impactada e germinou a vontade de entender melhor
nossa cultura afro-brasileira. Conheci Pierre Verger em Paris, que me indicou
um caminho: Benin, e inclusive indicou várias pessoas que poderiam me ajudar
nas pesquisas. Viajei então para Benin, e ali me encontrei com o olho d’água de
nossas raízes africanas."
Sempre o mesmo ponto. A raiz puxando o fio, busca de uma origem que é
também um recomeço e define o diálogo do homem consigo mesmo. A fotógrafa
brasileira Lucy Barbosa formou-se em História da Arte em Paris. Em meio a
estudos de etnologia, pesquisas envolvendo diversas culturas, a fotografia
surgiu talvez como o catálogo "completo, escrupuloso e comovedor" a
que se referia Dalí, um ambiente do testemunho do fragmentário das culturas. No
entanto, ao mergulhar na diversidade revelou-se uma visão de mundo que unia
fios de uma parte e outra, tessitura da cosmovisão que hoje lhe define uma
poética.
UM DIÁLOGO NOSSO:
FM | Em tuas fotografias os personagens não são isentos de drama, ou seja,
podem ser vistos como personagens comuns, com os quais nos identificamos, o que
imprime à tua estética uma notável condição de humanismo. Em que radica essa
opção por uma identificação imediata com a experiência concreta?
LB | Não
houve uma opção racional. Trabalho a fotografia como um poeta trabalha um
poema, de uma forma emocional. Minha especialidade é a fotografia documental.
Ela me permite retratar, também, meu olhar para a vida… Meus ensaios
fotográficos não foram encomendados. Partiram espontaneamente, o que me
permitiu fotografar livremente. Fotografei cenas do cotidiano, o dia a dia das
pessoas, hábitos, tradições, que faziam parte também do meu cotidiano, do meu
próprio dia a dia… Sim, fiz questão de retratar personagens comuns, com os
quais nos identificamos. Quis mostrar que paralelamente a tudo o que se mostra
sobre este continente (conflitos étnicos, epidemias e miséria), existe também
paz, a normalidade dos afazeres diários como ir ao mercado, cuidar da casa,
educar as crianças, trabalhar…. Enfim, a vida como ela é.
Esse apetite por indigestões é o que diferencia a obra de Lucy Barbosa
de um mero captor de imagens. A imagem em si é uma burla, um ardil, uma ilusão
de ótica. O mundo se encontra atrás da imagem. Ou dentro, se a imagem o sabe
revelar.
FM | Em que sentido toda essa mescla de contatos te enriquece? Por exemplo,
como somas os cultos religiosos das distintas etnias africanas com o nomadismo
do Saara?
LB | Sou um mosaico de vivências e influências
culturais. Brasileira, européia e africanas. Morei em Paris (1984-1993), e já
fazem 10 anos que todos os anos passo uma parte do tempo na África. Assim
sendo, pude, como você diz, percorrer territórios distintos na geografia
humana. Allandulilah!!! Incluso o de cunho religioso, que veio agregar valores
fundamentais em minha vida. Toda mescla de contatos é riquíssima, pois te
apercebes das diferenças e dos diferentes valores culturais. Por exemplo,
depois de ter convivido com o ceticismo europeu, na África convivo com uma
profunda religiosidade nas pessoas, da proximidade que elas têm com Deus, com o
divino. De como a religião e as práticas religiosas islâmicas norteiam suas
vidas e referenciais. O animismo também é muito presente na África, mesmo se
uma grande parte converteu-se ao Islam. Os africanos eram animistas como nossos
índios eram antes de serem catolizados. A convivência destas fés (mulçumana e
animista) são pacíficas e respeitadas mutuamente, afinal temos um
livre-arbítrio. Floriano, os tuaregues, beduínos e mouros, são nômades com uma
linhagem espiritual mais ligada ao Oriente, são menos mestiçados em relação às
culturas animistas ou pelo vodu encontrado na África Negra. Deus meu, tantas
Áfricas numa África!
Lucy Barbosa percorreu, entre 1997 e 1999, uma região imensa, envolvendo
países como Mauritânia, Niger, Mali, Síria e Jordânia, documentando o cotidiano
de povos nômades, a exemplo dos tuaregues, mouros, beduínos e peuls woodabes.
Ela mesma os situa: "herdeiros de povos ameaçados de uma raça perseguida
por outras raças, formam uma única nação feita de múltiplos povos justapostos,
adicionados e jamais confundidos". Talvez radique aí um ideal da
liberdade, a possibilidade, por exemplo, de uma América se perceber como
conjunto de etnias que vêm sendo sistematicamente destroçadas.
Há dois ensaios fotográficos que definem essa aventura do olhar
(percepção de mundo) em Lucy Barbosa, intitulados sugestivamente Mulheres de Ébano e Filhos do Vento. O primeiro
busca revelar a presença da mulher ("a força matriarcal de procriação e
manutenção da estrutura social do cotidiano e da vida"), enquanto o
segundo percorre os rastros invisíveis do que ela mesma chama de "últimos
cavaleiros do deserto". O toque – por onde começa o mundo – de câmara de
Lucy alude a um portal sagrado, que dá acesso a tudo o que vemos, somos ou
intuímos.
Sobre Filhos do vento,
me revelou: "é uma continuação da busca de nossas raízes, desta vez moura!
Fui seguindo um fio, que me levou a meus ancestrais… E o mais interessante,
Floriano, é que quando me encontro em meio a este universo, bérbere, mouro,
árabe, tudo me soa muito familiar. É como se meu espírito estivesse voltando
para casa!"
A fotografia não dista nada de outra qualquer condição de abordagem do
mundo. Também através dela se busca o coração das coisas. Quando indaguei a
Lucy onde repousava seu olhar, quando mirava o deserto, me disse:
LB | No infinito, no grande silêncio, nessa imensa
capacidade que ele tem de te humilhar, de te remeter a si mesmo, ao
essencial... O deserto é, por excelência espiritual, um imenso jardim zen,
conduz à contemplação. É um espaço fora do tempo, longe da história dos homens.
É um espaço interior. Não viajamos nele, mas sim peregrinamos. Nunca me senti
tão perto de Deus como lá.
Não há propriamente uma mesa em que real e
imaginário ponderem acerca de insondáveis caprichos. Dalí se encantava com a
alucinação da técnica, mas se pode ver em muito do que nos deixou uma
alucinação do ser. Alheio a si mesmo. O que torna a fotografia de Lucy Barbosa
um objeto de engrandecimento da beleza e de assombro diante da existência é que
consegue projetar uma visão de mundo além do próprio tempo. Poderia estar
pintando ou escrevendo. Põe-se diante do vazio e indaga: por onde começar?
[Originalmente publicada em Agulha Revista de Cultura # 15, agosto
de 2001]
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