Ao tocar a essência
do homem a poesia o revela em todas as suas contradições e esplendores. Ao
descerrar o véu do desconhecido a experiência poética nos mostra o sentido
absoluto da realidade. Este momento único de comunhão com as coisas à nossa
volta fundamenta a expressão universal da poesia em todos os tempos. Estamos em
todas as coisas, na exata proporção em que todas as coisas estão em nós. Este o sagrado
fluxo do real, reflexo e reflexão de todo movimento que nos dá sentido. O real
portanto parte do interior do homem e a ele retorna, sendo a poesia não uma
fuga ou uma deformação do real, mas sim sua afirmação absoluta.
A distância e a precisão na associação de ideias é que dão à imagem sua
força, sua inconfundível carga de emoção e realidade, já o anotara Pierre
Reverdy. Através da imagem a poesia reflete toda a experiência do homem em seu
interior. A poesia equivale ao amor, expresso a partir de signos que se
complementam: o ritmo da imagem, a imagem do ritmo. Ao combinar tais elementos
(como os místicos combinavam fé e regra), a poesia penetra no grande abismo da
linguagem, em sua região extrema e fundante: o silêncio. Descobre ali então que
o dramatízo de sua experiência é a
única maneira de revelar o ponto de semelhança entre o homem e as coisas à sua
volta.
Sobre a prancheta alguns livros abertos, anotações, papéis amassados. A
desordem também tem suas normas fecundas, afinal é ela quem reconduz,
reintroduz o mundo em seu fluxo de origem. Pois bem, a partir desta desordem de
papéis começo a escrever algumas palavras sobre Ludwig Zeller (Río Loa, 1927),
o admirável poeta chileno radicado no Canadá. Li, a princípio, alguns textos
que considero importantes sobre este poeta, assinados por José Miguel Oviedo,
Edouard Jaguer, Anna Balakian, Albert Moritz. Todos os caminhos conduziam inicialmente
a uma indagação: qual a razão da ausência de um grande poeta no cenário das
antologias? É bem verdade que a lógica das antologias tem por princípio
contrariar as expectativas. Contudo, uma unanimidade tão veemente merece melhor
atenção. Igual caso, no âmbito da poesia hispano-americana, registra-se com
relação a poetas como o venezuelano Alfredo Silva Estrada (1933) e o cubano
José Kozer (1940) – este último mereceu uma atenciosa exceção por parte do
sempre criterioso Jorge Rodríguez Padrón, em sua Antología
de la poesía hispanoamericana 1915-1980 –, entre outros. O caso de Ludwig
Zeller salta tanto aos olhos que até mesmo as antologias dedicadas ao
surrealismo – vertente a que esteve sempre ligado – deixaram-no de fora. Não
nos estenderemos aqui, contudo, nas razões de tal ausência (que inclusive nos
parece algo inexplicável) e sim dos indiscutíveis motivos de sua garantida
presença no cenário das literaturas contemporâneas.
O nome de Ludwig Zeller está intensamente ligado ao Surrealismo e, em
particular, ao Surrealismo chileno. Não somente por sua obra poética e
plástica, mas também por sua extensa atividade editorial. Desde os anos 60,
quando residia ainda em Santiago, até os dias atuais, já inteiramente
estabelecido em Toronto, Zeller sempre cuidou de editar livros seus e de vários
outros poetas chilenos, tais como Humberto Díaz-Casanueva, Rosamel del Valle e
Enrique Gómez-Correa. No Chile as edições tinham por selo Casa de la Luna , sendo posteriormente
fundada – já residindo no Canadá, em 1975 – a Oasis Publications, tendo por
companhia permanente sua mulher, Susana Wald, também ela artista plástica. Nesta
expressiva empresa editorial confirma-se o valor de um dos grandes poetas de
nosso tempo. Através de Oasis Publications tanto se publicaria livros de poemas
como também catálogos de exposições, fitas cassetes com leituras de poemas e,
mais recentemente, um vídeo (The
alchemical body, 1986), vídeo-poema do próprio Zeller, incluindo colagens e
pinturas dele e de Susana Wald. Todo este incansável empenho editorial dá a
Ludwig Zeller, no âmbito do Surrealismo latino-americano, importância igual à
do argentino Aldo Pellegrini, outro fundamental difusor da estética surrealista.
Em seu livro de aforismos Un
camelo perfumado jamás baila tango (1985), há um que nos interessa de
maneira especial: “Surrealismo: acidente geográfico no país do sonho”. Pode-se
dizer que a essência do Surrealismo residia em uma incansável busca de síntese
entre sonho e realidade. Se o sonho é a metáfora-chave para a entrada na realidade,
o contrário também deve ser observado. Entendo ambos fluxos como conteúdos
essenciais à formação do ser. Jamais separá-los, ou mesmo relevar um em relação
ao outro. Neste sentido o Surrealismo latino-americano, contrariando a confusa
observação de certa parcela da crítica, tem deixado obras essenciais, entre as
quais se destacam livros de César Moro, Emilio Adolfo Westphalen, Octavio Paz,
Enrique Molina, Sérgio Lima, Ludwig Zeller e Enrique Gómez-Correa.
A obra de Zeller nos leva a uma particular observação: a maneira como
domina forma e conteúdo, em uma unidade essencial que bem define toda grande
poesia. Entre suas fontes, embora se sobressaia o Surrealismo, não podemos
deixar de mencionar o barroco, estas duas vertentes estéticas que seguem alimentando
e refrescando o melhor das poéticas contemporâneas. Através de uma fusão de
ambas correntes a poesia de Zeller nos conduz sempre à beira de um abismo, onde
imagens, vozes, visões, reúnem-se para devorar conflitos, encarnando a cada
leitura o próprio corpo da condição humana. Há ali um rígido processo
metafórico de reunir realidades dispersas entre si, o que dá a esta poesia uma
intensidade fascinante e abissal. Entre seus livros encontram-se Sílaba incandescente del deseo (1981), Mujer en sueño (1988) e Salvar la poesía Quemar las naves, este
último uma bela antologia de sua obra poética publicada entre 1957 e 1984, incluindo
inéditos datados de 1986. Vale aqui ressaltar que boa parte desta poesia teve
originalmente edições trilíngues (espanhol, inglês, francês), não esquecendo a
preciosa edição multilíngue de seu poema “El faisán blanco” (A celebration, 1987), que contou com a
participação de 51 tradutores – a versão brasileira vem assinada por Sérgio
Lima – e 45 artistas plásticos – que interpretaram visualmente o poema – de
diversas partes do mundo, constituindo-se, inegavelmente, em um dos mais
ousados projetos editoriais de que se tenha notícia. Além dos trabalhos aqui
citados, menciono ainda as edições em inglês: The marble head and other poems (1986) e The ghost’s tattoos (1989), ambas traduzidas por Albert Moritz e
Beatriz Zeller.
Desde os primórdios do Surrealismo que a colagem revestiu-se de um êxito
impressionante, sendo raro o artista que, ao percorrer as trilhas da aventura
surrealista, não tenha a esta técnica se dedicado. A partir de Max Ernst, são
muitos os nomes que se destacam, entre eles os de Jindrich Styrsky, Joseph
Cornell, Jindrich Heisler e Svanberg, sem esquecermos aqueles já por demais conhecidos:
Magritte, Ray, Brauner, Picasso. A indiscutível contribuição de Ludwig Zeller
ao cenário das artes contemporâneas se estende ainda ao campo visual, através
de seu igualmente rigoroso trabalho com colagens. O essencial de tal
contribuição – como acertadamente nos lembra Edouard Jaguer no prefácio ao
livro 50 collages (1981), que reúne
parte significativa da obra de Zeller nesta área – radica em sua retomada à colagem
clássica (utilização de gravuras do século passado), no exato instante em que
esta técnica surrealista enfrentava uma grave crise. Ao retomar com rigor os
métodos já empregados por Max Ernst, Zeller enfrenta o grande desafio na vida
de todo artista: refrescar a linguagem, extrair seu peso excessivo,
imprimir-lhe um novo e sadio ritmo. E o consegue com uma maestria pouco igualada.
Além das inúmeras exposições que tem realizado (Chile, Canadá, Estados
Unidos, França, Bélgica, Inglaterra, México, Itália), as colagens de Zeller
estão presentes em todos os seus livros e também naqueles de outros poetas por
ele editados, a que já nos referimos anteriormente. É importante aqui salientar
a existência de uma parceria genial e autêntica: a fusão de suas colagens com a
pintura de Susana Wald. Tal casamento nos toma de assalto pela grandeza de seu
resultado. A técnica consiste em Zeller passar a colagem a Susana para que
esta, através de sua pintura, lhe descubra novas vertentes. A resultante, um
dos mais apaixonantes frutos de um trabalho a quatro mãos. Este é, sem dúvida,
mais um recurso de que dispõe Ludwig Zeller para confirmar seu talento múltiplo
e a supremacia de um perene renovador das linguagens artísticas.
[1988]
[Incluído
no livro O Começo da Busca - O
surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo:
Escrituras Editora, 2001).]
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